2006-02-25

Um Concerto

Ontem fomos a um concerto. Em Melbourne, na Hammer Hall. Entramos na sala, high tech, com refletores circulares de som de acrílico com altura ajustável pendurados no teto... um lugar fantástico, digno de um filme de ficção científica. O gigantesco órgão estava iluminado em tons de verde, e as arquibancadas em três níveis estavam lotadas. Todo o imenso teatro aparecia em miniatura nas dezenas de refletores de som no teto, miniaturas invertidas. Era como se houvesse que mostrar a todos o ambiente gigantesco, que cada um não podia ver individualmente.

Até aí, tudo bem. Já fui literalmente a centenas de teatros fantásticos. Lembro de um em Viena...

Fomos ver o violinista Nigel Kennedy. Eu tinha comprado um CD seu com o concerto em mi maior de Bach... meu favorito. Achei uma das interpretações mais maravilhosas que ouvi na vida. O concerto de ontem ia ser Vivaldi. Quatro "Concerti Grossi" e "Le Quattro Stagioni" após o intervalo. Bastante convencional. Poderia até ter sido chato. Entretanto o regente era Nigel.

Primeiro a orquestra entrou. A iluminação do palco estava perfeita, a tradição de teatro inglês não deixaria uma sala como essa com luzes de segunda categoria. Já tinha assistido a essa orquestra antes e fiquei impressionado com a qualidade dos músicos. Ontem estavam em uma formação em "camerata" de cordas.

Aí entrou Nigel. Com o violino e o arco em uma mão, pesadas botas pretas de punk, um casaco cuidadosamente rasgado, a cabeça meio raspada e o pouco de cabelo que restava penteado para cima com gel. Era completamente diferente da foto que eu tinha visto no CD. O cara parecia alguém recém saído de um manicômio.

O violino favorito dele parece ser um "Guarnieri del Gesú" de Cremona 1725. Deve valer alguns milhões de dólares. Isto é, valeria, se pudesse ser substituído. Seria esse o violino que esse punk tinha na mão? No mesmo segundo, entretanto percebi que a mão com o violino se movia diferente do resto de Nigel. Ele entrou com passos largos, debochados, batendo os pés no chão ruidosamente e se sacudindo todo. Aquela mão, no entanto, tinha o toque miraculoso de um grande violinista e segurava o instrumento com uma delicadeza infinita, um amor incomparável. Isso ele não podia jamais esconder ou evitar.

Entrou, fez uma série de piadas sobre os nomes das composições, que na verdade não eram nomes, senão números: RV356, por exemplo. Dizia algo como "O nome desta peça nos remete à antiga Veneza e transmite a emoção de Vivaldi quando..." e invenções e baboseiras nesse estilo, fazendo a platéia morrer de rir. Também pediu desculpas, alegando uma ressaca de VB (Victoria Bitter, uma cerveja meio vagabunda), e agradeceu o público por permitir que ele tocasse nestas condições.

Confesso que com este início, eu não esperava muito. Entretanto, começaram o RV356, que por coincidência é o meu concerto favorito de Vivaldi, em um andamento mais para "Presto con Fuoco". Nunca tinha ouvido assim. Os violinos voavam furiosos e uma ligeira fumaça saía das cordas. Quem conhece sabe que não é fumaça, apenas resina em pó que a vibração das cordas tira da crina do arco, mas que parece fumaça, isso parece. A orquestra seguia o louco admiravelmente, e este usava as botonas para marcar o tempo furioso. Perfeito! Na época de Vivaldi alguns regentes usavam um bastão contra o chão e o efeito devia ser similar.

No primeiro concerto a cadenza maravilhosa, obviamente composta por Nigel, fez a primeira violinista, uma Maori da Nova Zelândia, ficar enternecida. Como deve ser sofrida a vida desses artistas, um superando o outro na capacidade de emocionar, e tendo que manter o controle, o absurdo controle motor que os músicos tem. Os olhos dele tinham uma tristeza profunda nesse momento, estavam pequeninos, testemunhas de algum sofrimento terrível, como só a música pode reproduzir.

O concerto foi transcorrendo fantástico, com mais e mais piadas durante o intervalo. Em um determinado momento, a corda do violino de Nigel quebrou. Em segundos, Nigel alegremente troca de violino com a primeira violinista, que por sua vez troca com o violinista que estava atrás dela que troca com quem estava atrás dele e assim foi indo até a última violinista, que cuidadosamente tirou a corda quebrada. Nigel começa a tocar no violino desconhecido para ele, e após alguns compassos, diz alto e claro "Very nice violin!", ao que a plateia teve que conter o riso novamente.

No intervalo, houve uma pequena confusão para saber quem estava com o violino de quem, mais risadas, e Nigel procede à troca da corda quebrada, em frente a todo mundo. Como é um processo meio lento, começa contando que todas as vezes que toca na Austrália a corda quebra. Enquanto trocava e afinava fez piadas sobre violistas e maestros. Os violistas são para os violinistas como os portugueses são para os brasileiros, se é que isso dá uma idéia do tipo de piada.

Fez muitíssimas macacadas mais, entre elas deu um "selinho" em uma moça da platéia. O namorado dela ficou meio mal... Mas o que achei mais fantástico foi o comentário sobre a força da música ao vivo.

"As gravações são uma coisa ótima, mas nada se compara a pessoas tocando para outras pessoas"

Tanto mais impactante se pensarmos que Nigel era o aluno favorito de Yehudi Menuhin, se pensarmos nos anos e anos que Nigel e os outros músicos da orquestra demoraram em melhorar, por puro amor à arte, em todos os fantásticos seres que eles encontraram, todos tendo dentro de si aquela urgência maravilhosa de querer mais e melhor. Todos os que lá estavam eram artistas, como os húngaros dizem "Müvész". Porque entre um "Müvész" e um instrumentista existe uma distância infinita. E o fato deles terem tocado para nós, este sim é o supremo ato de carinho e de amor.


2006-02-17

A Lei de Gerson explicada

Na verdade a "Lei de Gérson" é uma supersimplificação. É uma consequência de um outro fenômeno: o brasileiro (sem generalizar, por favor) não sabe somar.

Acho que é mais fácil colocar a coisa com exemplos. Digamos que tem um cara que não sabe escrever direito. Em vez de ir fazer um esforço e aprender de uma vez, que é óbviamente a melhor forma de resolver o problema, ele toma uma outra atitude. Trata imediatamente de convencer a maior quantidade possível de pessoas que é "legal" escrever do jeito que ele escreve. E funciona: os outros começam a escrever do jeito mais "legal" e tem que fazer menos esforço, claro. Tratando de baixar o nível à sua volta, o fulaninho resolveu o problema dele, sem perder nada. Na verdade ele até ganhou um pouco pois poupou esforço e agora ele é "legal" também. Entretanto a soma, o total do conhecimento decresceu. Ele destruiu conhecimento.

A subversão de conceitos é exemplificada pelos heróis nacionais. Tem um que roubava carros e acha até hoje que fazia bem. Fez um verdadeiro hino à malandragem. Não se arrepende de nada. E reduziu a soma da decência, fazendo as pessoas acreditarem que ser malandro é que é bom.

Vamos a outro exemplo, bem brasileiro. Um sujeito vai contratar um funcionário. Em lugar de procurar um bom funcionário, que vá acrescentar valor à sua firma, ele faz de tudo para encontrar o cara mais barato e pagar o mínimo possível. Naturalmente, assim ele acaba premiando os mais incompetentes, que são os únicos que aceitariam tal posição por tal preço. Destruiu-se riqueza novamente, pois a firma perdeu. O dono acha que ganhou, pois tirou do funcionário a diferença do que ele deveria ter pago e o que efetivamente pagou. Mas a soma é menor.

Um outro exemplo: um funcionário tem duas opções: fazer greve ou trabalhar. Se ele tiver razoável certeza que seu ponto não será cortado, ele fatalmente decidirá pela greve. Novamente, destruiu-se valor. De onde ele acha que o seu pagamento mensal vem? Ele sempre acha que para ele ganhar alguma coisa, tem que tirar de alguém. Não entende que o que ele faz reverte para ele mesmo. É um conceito demasiado sofisticado. Não percebe que se o lucro for maior, ele tem melhores condições de negociar. A soma foi para as cucuias.

O governo brasileiro funciona usando a mesma lógica. A soma é o que menos interessa para eles. Em vez de tomar ações para a melhora da economia, eles aumentam os impostos. Isso, todo mundo sabe, deprime a economia. A soma é menor.

Ainda em economia, colocam um banqueiro para comandar os rumos. Juros lá no céu. Banco tirou das pessoas e a soma diminuiu.

Como, na cabeça brasileira, não há maneira de criar valor, o valor tem que trocar de mãos. MST é um exemplo. Tira de um, dá para o outro. Na transação a soma diminui novamente.

Criar valor, que só ocorre com avanços tecnológicos e de produtividade decorrentes, depende de honesta utilização de capital humano e intelectual. Qualquer economista de segunda classe sabe disso. Entretanto, o exemplo máximo da nação, a besta Lulal é um exemplo fantástico de alguém que não sabe somar. Ele até faz troça regularmente de quem estudou.

Com as cotas para as universidades, o governo resolve um probleminha: não precisa gastar nada com ensino básico. Tirou-se daqui, pos-se lá: a soma do conhecimento diminui novamente.

É ainda pior: o brasileiro, em sua eterna luta contra o preconceito racial, está quase redefinindo a ignorância como raça. Por este motivo, em breve veremos que será crime inafiançável não contratar alguém porque é ignorante. O ignorante poderá andar de cabeça erguida, terá o privilégio da discriminação positiva sem mais incentivo algum para estudar. A soma continuará a diminuir. O ignorante tem é que sentir vergonha para ter algum estímulo a estudar.

Depois ainda as pessoas se perguntam porque é que o PIB não cresce.

Vou parar por aqui, mas teria mais uns duzentos exemplos para dar. O negócio é ensinar a somar. Óbviamente, se cada um fizer um pouco, ensinando aos demais como se soma, existe uma pequena esperança de melhora. Em cada detalhe. Em cada pequena interação.

Vejam bem: seguindo o raciocínio geral, eu não deveria me importar, afinal estou em um país que funciona. Sinto entretanto imensa vergonha de que no meu país (Brasil) a maior parte das pessoas não saiba somar.
Segue...

2006-02-01

Esta escola é uma vergonha

Esta é uma história de ficção. Qualquer semelhança com eventos que tenham ocorrido ou venham a ocorrer no futuro terá sido pura coincidência.


Os corredores


Fernando estava doente. Não doente físicamente, mas doente de indignação. Desde que tinha entrado na faculdade, uma das melhores de Engenharia do país, passou a se sentir sozinho. E o motivo era claro. Tinha vindo para aprender, entretanto notou que o intuito dos seus colegas era outro: pegar o canudo. Antes da faculdade Fernando acreditava que essa diferença de objetivos não importava, bastaria a ele se concentrar em aprender e tudo funcionaria a contento. Em todas as faculdades do mundo há bons e maus professores, maus e bons alunos. Porque não gastar mais tempo com as matérias dos professores bons? O problema estaria automaticamente resolvido.


Na vida nada é tão simples assim... Para começar ele estava em minoria absoluta. Calculava que um aluno em vinte, aproximadamente, tinha real interesse em aprender. Isso tornava a sua posição extremamente fraca. Não se daria por vencido. Fernando inventou uma estratégia para conseguir o que queria. Primeiro, iria às primeiras aulas de cada professor no curso, para investigar se valeria a pena assistir ou não. Nessa aula, torturaria o desafortunado catedrático com perguntas pertinentes, para melhor avaliá-lo. Se fosse 'aprovado' nesse teste, o professor poderia estar certo de que Fernando assistiria a todas as suas aulas e iria bem em suas provas. No caso contrário, mais provável, diga-se de passagem, Fernando faltava a todas as aulas e só aparecia nos dias de prova. Se fosse reprovado havia uma segunda chance, seis meses depois, na qual Fernando normalmente passava. As provas eram similares, e bastava estudá-las para passar na próxima vez.


Ao longo do curso, percebeu que havia vários professores realmente interessados em ensinar. Alguns eram muito bons mesmo. A maioria no entanto era lamentável. Não importava. O curso era grátis, portanto tudo o que Fernando pudesse aprender lá era bem-vindo. O professor Absinto, por exemplo: os alunos o odiavam a ponto de pixar as paredes da escola com insultos de toda espécie. Ele entretanto era um dedicado professor. O motivo do ódio dos alunos era simplesmente o fato de suas provas serem rigorosas. Nada mais. Fernando sempre ia às aulas de Absinto. Não perdia uma.


A faculdade tinha uma estrutura feudal, onde os professores se entrincheiravam em suas cátedras. Não havia exposição alguma ao mundo exterior. Uma desculpa era a língua: se em algum lugar do planeta houvesse um curso em dialeto Tamil, por exemplo, não haveria muitos candidatos a professor disponíveis no mundo acadêmico. E Português, na sua versão brasileira, convenhamos, não passa de uma obscura língua latinoamericana. Entretanto essa era somente a desculpa. A razão das trincheiras estava na mentalidade de funcionário público e no afã de proteger o seu emprego a todo custo. Concorrência de fora jamais seria bem-vinda. Simples be-a-ba da mediocridade.


Os corredores da escola condiziam estranhamente com seu clima nefasto. Parecia que jamais alguém pensou em senso estético ou mesmo em praticidade. Escuros e compridos, pareciam túneis subterrâneos que conduziam a centros de tortura no Afganistão. Seriam desenhados para desestimular professores forasteiros? Apesar de extremamente opressor, as pessoas se acostumavam com esse ambiente. O ser humano é incrivelmente versátil.


Fernando não tinha intenção alguma de se acostumar com esse lugar. Queria, sim, aprender tudo o que pudesse e seguir adiante.



Controles


O semestre recém havia começado e Fernando já estava em plena atividade de avaliação de professores novos. Um deles chamou-lhe a atenção, o Prof. Avestrucci, de controles. De trato um tanto seco, ele parecia ser reconhecido em sua área. Havia publicado diversos livros sobre o assunto. Meio calvo, não muito alto e bem vestido, expunha conceitos com clareza. Fernando fez uma série de perguntas e ele não hesitou em responder. Parecia um dos bons, pensou, e programou-se para assistir sua segunda aula.


Ser capaz de prever o futuro é um velho sonho da humanidade. De certa forma todos fazemos algumas previsões... quando largamos uma pedra sabemos que cairá no chão. Um pássaro, entretanto, poderia surprender-nos com um voo rasante inesperado e levar a pedrada na cabeça. Sabemos que as chances são pequenas, mas quando algo similar acontece, ficamos boquiabertos. Assim se sentiu Fernando quando chegou para a segunda aula.


Não estava pensando em nada especial quando chegou. Mas a sala estava diferente. Parecia uma manifestação contra o imperialismo americano coordenada pela UNE. Faixas e cartazes que diziam “Fora Avestrucci” e uma série de impropérios contra o coitado. Tudo coordenado, preparado de antemão, havia algo estranho acontecendo, algo que Fernando não entendia, estava embasbacado. Havia um clima de expectativa tensa, excitação entre os alunos, todos esperavam o Prof. Avestrucci chegar para ver sua reação. Fernando perguntava o motivo disso tudo, sem conseguir resposta. Nada fazia sentido algum para ele.


Quando Avestrucci chegou, viu a incrível manifestação e ficou paralisado por um instante. Fernando ainda conseguiu ouvir o homem murmurando “Eu não preciso disso” enquanto ia embora, a passo rápido, olhando para baixo. O entusiasmo dos alunos era geral. Aplausos e vivas, assovios e urros. Fernando ainda estava se perguntando o que tudo isso queria dizer, quando aparece um sujeito baixinho, que todos recebem com a maior felicidade. Professor Robertinho, seja bem vindo...


Fernando ainda não tinha entendido nada sobre o episódio. Continuava estarrecido. O que mais lhe chamou a atenção é a sincronia perfeita entre a saída de Avestrucci e a entrada de Robertinho. Ele sabia que isso não podia ser coincidência. O ato tinha sido orquestrado, ainda que ele não conseguisse ver o regente. Não havia dúvida: uma sinfonia macabra soava perfeita e tinha sido composta nos bastidores.


Robertinho começou sua aula. Apresentou-se como professor suplente de Avestrucci. Fernando observava desconfiado: óbviamente o cara era recém-formado. O seu aspecto e forma de agir estavam mais para um aluno do que para um professor. “Sem preconceitos” - pensa Fernando - “Este cara pode até ser um gênio, vamos descobrir...” e iniciou a sabatina de boas vindas a professores novos. Suas suspeitas foram confirmadas: Robertinho era “inho” em tudo: covardezinho, escapulia das perguntas como podia; mediocrezinho, tentava contra-atacar insinuando que as perguntas não eram pertinentes; inflexívelzinho, fazia de tudo para se ater a um roteiro pré-estabelecido... sabia que qualquer deslize seu seria fácilmente detectado. Decepcionante. “Não há livro texto” - declara - “O curso será baseado em anotações de classe”. Isso é incrível! Um cara que mal sabe a matéria dispensa os textos sobre o assunto e decide dar aula baseado na sua própria cabecinha? Fernando ficou furioso.


Tentou reverter a situação, falou com colegas só para ser recebido por indiferença generalizada. Todos estavam satisfeitos com a troca... algo assim como “Robertinho é um dos nossos”. Um dos nossos o quê? Não foi capaz de convencer nem um único colega a tentar trazer o Prof. Avestrucci de volta. No fim estava desanimado. Que gasto inútil de energia. Um colega parece ter ficado com pena de Fernando, e veio lhe falar no fim da aula.


-Fernando, você precisa entender que essa matéria é inútil. O Professor Avestrucci é famoso por seu alto índice de reprovação. Não precisamos sofrer mais essa. Já tivemos que engolir Eletromag com o Absinto. O importante é terminar esta faculdade de merda de uma vez.


-Você pode pensar dessa maneira mas eu discordo. Eletromag nem foi tão ruim assim. Qual é a vantagem de trocar para o Robertinho? O cara não sabe patavinas. É um enrolador. Está na cara. Vamos aprender o que com um cara desses?


-O que vamos aprender não sei, mas sei que vamos passar, e é isso que me preocupa no momento.


-Então essa manobra estava toda “armada”?


-...


Não havia mais o que fazer. Fernando tinha entendido tudo. Até a motivação do Robertinho já lhe era clara: dar aula para mais uma turma, ficar entrincheirado no seu postinho, carguinho de professorzinho mediocrezinho que era. A função real da faculdade não contava absolutamente nada. “E que tudo o mais vá para o infernoooooo.....”


Uma prova


Claro que Fernando não veio às aulas. Prestigiar Robertinho com sua presença seria ir contra tudo aquilo em que acreditava. O tempo foi passando e chegou o dia da prova de controles. Desanimado, Fernando deu uma olhada em alguns livros sobre o assunto. Não copiou o caderno, mesmo sabendo que as provas eram com consulta. Pensou: “consulta ao caderno, realmente esse Robertinho deve estar brincando”. Era uma situação absurda, realmente.


A prova consistia em duas questões, cada uma valendo a metade da prova. Fernando leu o enunciado da primeira, ela fazia sentido. Após algum trabalho chegou a um resultado. Checou e contra-checou o exercício. Tinha absoluta certeza de ter acertado a metade da prova. Pensou: “Cinco não está mal para quem não estudou e não tinha o material de consulta”. Entregou a prova assim mesmo e saiu.


Uma semana depois, as notas foram afixadas. Fernando ficou atônito: quase todos tinham tirado dez. Para dizer a verdade, havia um 6,5 e um zero. O zero era dele, naturalmente. “Há algo estranho aqui novamente...” pensou. Conversando com colegas eles explicaram que a prova não passava de uma cópia do caderno. O professorzinho de araque tinha resolvido as duas questões da prova na lousa, antes da prova e todos copiaram cuidadosamente... Pela primeira vez, Fernando olha para o caderno de um dos colegas. Em segundos, percebeu qual o problema: o Robertinho tinha errado um sinal em uma equação, e todos repetiram seu erro... nas provas.


Fernando começou a considerar sua situação patética: o único que tinha acertado a questão era também o único zero... começou a rir. Os colegas o olhavam preocupados: não vá Fernando pedir revisão ou algo assim... Robertinho seria forçado a reduzir a nota de todos os demais!


Claro que não resisitiu. Tinha que ver a cara do professorzinho... Foi à sua sala, controlando o riso, tentando parecer sério... Toc toc toc.


-Pode entrar.


-Boa tarde, professor. Gostaria de pedir uma revisão na prova.


-Como não... deixe-me ver... ah... sua situação não é muito boa.


Claro... tinha tirado zero... Robertinho pega uma prova com dez para usar como gabarito. Fernando antecipou-se e disse:


-Professor, acontece que não quero comparar a prova com a dos meus colegas, quero que o senhor me mostre o que está errado na minha primeira questão.


Era impressão sua ou o Robertinho estava ficando pálido? Fernando continuou calmamente:


-Os coitadinhos dos meus colegas não fizeram nada de errado. Só copiaram o caderno do jeitinho que o senhor ensinou. O problema é que havia um pequeno detalhe errado na lousa...


Não era impressão: ele estava suando frio. Não só suando mas pálido e trêmulo. Do que ele teria medo?


-... este sinal, está vendo? A partir daqui tudo muda. Mas por favor não diminua a nota dos meus coleguinhas, eles não fizeram nada de errado... coitados.


O cara já estava se retorcendo na cadeira. Murmurou:


-Bom.... não sei.... talvez possa lhe dar meio ponto....


Fernando estava se divertindo muitíssimo... mudou o tom:


-Meio ponto uma ova! Não saio daqui sem 5 pontos. Não fui eu quem errou.


Robertinho estava de dar pena. Ainda assim Fernando não entendia porque o cara resistia tanto em aumentar-lhe a nota. Sua nota foi subindo, subindo... quando chegou em 4,5 Robertinho parou de aumentar. Porque o miserável não dava 5 para ele de uma vez? Decidiu não perder mais tempo com esse verme e aceitar os 4,5... Mas qual era o problema em dar cinco?


Depois de algum tempo, Fernando entendeu. Todo o esquema ficava claro: haveria uma contundente prova contra o Robertinho se ele desse 5 para Fernando. Mas era tudo tão mesquinho... tudo se resumia em Robertinho manter a sua “boquinha”... e os colegas só pensavam em passar. Fernando pensou se devia levar isso tudo adiante e denunciar o cara para o diretor ou reitor ou para o jornal nacional que fosse. Mas teria toda a turma contra ele... seria um desgaste brutal. Fernando ainda teria que passar anos nessa vergonhosa faculdade... pelo menos seria mais fácil sem o ódio de seus colegas.


Fernando aprendeu bastante nesse curso. Percebeu que o fundamental problema da escola não estava nos professores e sim nos alunos. Seus colegas faziam de tudo para a escola piorar. E os que se formavam já entravam para a gangue... lindo isso. Quando saíssem da faculdade diriam a todos quão boa a faculdade era, a melhor do Brasil, bla bla bla... Mas os sabotadores eram eles. Eles ajudaram o Robertinho, que ganhou excelente avaliação dos alunos. Robertinho seguiu recebendo dinheiro público por anos, e aperfeiçoou seus métodos medíocres. Fernando era co-responsável pelo atraso. Sentia culpa por tudo isso.


Claro que sempre haveria professores bons. Mas cada vez menos. Só os idealistas ficariam. Minoria absoluta, seriam empurrados para o canto enquanto testemunhavam a piora inexorável. Mais e mais dinheiro público iria ser devorado por parasitas para desespero dos que realmente quisessem ensinar, para desgraça de quem quisesse aprender. Comissões de alunos se certificariam de que fosse fácil passar, de que as notas fossem sempre altas. Mas não havia problema. Tratava-se somente de uma faculdade obscura, cujas aulas eram ministradas em um obscuro dialeto sul-americano.