2006-04-30

Uma folha em branco

Olhou novamente para a folha. Seus olhos, cansados, batalhavam com as letras que teimavam em se embaralhar, ali mesmo, na sua frente. A velha sensação incômoda tinha voltado, o coração já estava a bater mais rápido. Pensa momentaneamente que deveria consultar o oculista, os óculos que estava usando não pareciam mais ajudar. Faz uma pausa. Tira os óculos e esfrega os olhos. Sabia que estava se enganando, sabia que o problema não estava nos óculos. O problema era a própria página, havia demasiados parágrafos, demasiadas linhas e demasiadas palavras. Pensa que não haveria problema. Mandaria resumir. Sim, fazer um sumário bem curto para que ele pudesse ler, assimilar. Ele era inteligente. O problema é que não tinha tido oportunidade. Isso mesmo, não tinha tido a chance de ir a uma escola decente, ler livros... A sensação desconfortável, entretanto, não desaparecia. Sempre acontecia a mesma coisa. Cada vez que em sua vida tentou ler um artigo em uma revista ou jornal, tinha essa reação ansiosa. O esforço era muito grande, sua mente ficava em branco. Lutava para entender cada palavra. O rapaz ao lado não teria dificuldade em ler a página, resumi-la para ele. Tinha tido sorte. Tinha estudado. O que não conseguiu foi reprimir o seu ódio ao vê-lo ler e, tranquilamente, em segundos, resumir a página à metade de seu tamanho original. "Mais não dá, perderia muito conteúdo." disse, com a calma de quem está sendo limpidamente honesto. O que será que lhe causava mais ódio, a forma cândida com que falava ou a facilidade em ler aquela página e reescrevê-la em dois minutos? A sua calma honesta? Ele não tinha tido oportunidades, por esse motivo não pôde ser honesto como o rapaz tinha sempre sido. Tinha que se concentrar em outra coisa. Ficar com ódio do seu auxiliar não o ajudaria em nada. Tinha um país para administrar. Quase duzentos milhões de pessoas estavam esperando dele uma iniciativa, uma decisão acertada. Tinha que ler aquele resumo de um resumo das manchetes de primeira página dos jornais. Precisava no mínimo entender o que estava acontecendo, o que se dizia por aí. Com o novo resumo nas mãos, a ansiedade aumenta. Desiste. O ódio toma conta dele novamente. Imagina uma frase, uma frase que dirá logo mais para uma platéia de milhares de pessoas, que será transcrita em todos os jornais... como poderia começar? "Nunca antes neste país..." Sim, perfeito! Só assim o seu ódio seria mitigado. Aproveitaria para caçoar dos que tinham estudado. Bastava jogar na cara deles, desses desgraçados que leriam com facilidade o jornal no dia seguinte, mostrar-lhes como ele, somente ele podia entender a sensação, a sensação de impotência de segurar uma página, uma folha de papel, que poderia ter estado em branco. Uma folha escrita, que para ele era uma folha suja com garranchos feios e ininteligíveis. Só ele sabia como se apoderar dessa sensação de todos os que já a tinham sentido, voltá-la a seu favor. Isso ele sabia muito bem. Estava decidido. É o que faria hoje.















2006-04-25

Por que devemos tentar fazer algo?

Reproduzo o artigo abaixo do site primeiraleitura.com.br
Vale a pena ler.
A última linha e o título se referem a

"Lasciate ogni speranza voi che intrate"
frase escrita na porta do Inferno - Dante Alighieri - Inferno Canto III

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Deixando a esperança do lado de fora

Por Reinaldo Azevedo

A Grécia antiga não previa pena para o parricídio. Considerava-se um crime impossível. Daí que boas tragédias, que investigavam o mais profundo de nós mesmos, mais ainda depois que Freud as releu à luz da psicanálise, tenham surgido desse evento formidável: o filho que mata o pai, a filha que mata a mãe. Ainda assim, Édipo e Electra cumpriam um destino, uma tessitura urdida no empíreo, no além-do-homem. Os Deuses, então, transgrediam as regras por nós. Havia uma espécie de idealismo humanista, de crença na capacidade humana de resistir a certas paixões.
Vejam o caso dessa menina que ajudou a matar os pais a pauladas, Suzane von Richthofen. O que dizer a respeito? Ela mesma admite que não era movida por nenhuma forma especial de rancor. Chegou-se a ensaiar, num dado momento, o tal do molestamento infantil, mas a hipótese não prosperou. Restam apenas o ato e seu horror. E ato, vamos dizer, “indebatível”, se me permitem o neologismo: como nos comportamos diante do matricídio e do parricídio sem qualquer atenuante conhecida? É por isso que o debate se desloca para a pena que ela vai cumprir, para o fato de que estava fora da cadeia, para a armação de seus advogados, para fato escandaloso de um duplo homicídio, com todos os sinais de ardil, não ser o suficiente para manter um assassino em cana. Já mentir para o Fantástico, aí, não...
Comecei lá pelas musas e acabarei falando de algo aparentemente mais prosaico, como a possível candidatura de José Genoino e Antonio Palocci, dentre outros, a uma vaga na Câmara. Na verdade, são candidatos à impunidade, posto que buscam a imunidade parlamentar para crimes de que são acusados não no exercício legal de suas funções. Mas, antes que volte aqui, deixe-me, leitor, continuar um pouco na minha digressão. Faz sentido debater se é razoável matar pai e mãe? Não. Faz sentido debater se este ou aquele políticos podem jogar no lixo o Estado de Direito e investir na construção de um Estado paralelo? A resposta, de novo, é “não”. Tais coisas, em si mesmas, repito o neologismo, são “indebatíveis”.
Então o que escandaliza? Que lhes seja facultado o expediente de se proteger de qualquer pena. Vejam lá. João Paulo Cunha, ex-presidente da Câmara, terceiro homem na hierarquia da República, aquele que fez um eloqüente e indignado discurso na Câmara, que chegou a pensar em protocolar uma carta jurando a sua distância do valerioduto... Esse mesmo João Paulo será reconduzido à Câmara e ainda se torna eleitor disputado no confronto interno do PT para decidir o candidato do partido ao governo de São Paulo. O senador Aloizio Mercadante (PT-SP), que tanto se orgulha de ter passado longe da borrasca criminosa, da “quadrilha” (conforme diz o procurador-geral da república), aceita entusiasmado o apoio do companheiro — afinal, o homem foi inocentado pelo plenário...
Genoino, aquele que negava, entre lágrimas às vezes, a existência até mesmo do tal “dinheiro não contabilizado”; aquele cujo irmão tem um assessor que foi flagrado com a cueca recheada de dinheiro; que reivindicou e conquistou a aposentadoria parlamentar, também ele quer voltar à Câmara. Suponho que com boas chances de se eleger. Antonio Palocci, o homem que conseguiu se manter por mais tempo, blindado pela mídia, longe da lama e que, não obstante, ousou mais na agressão ao Estado de Direito, parece que também vai disputar um assento num Parlamento que, vá lá, talvez o mereça. Também nesse Poder, com as exceções de praxe, nunca se desceu tão baixo.
Santo Deus! O que essa gente quer que passemos a debater? Se o crime compensa ou não? É isso? O que essa gente quer que passemos a debater? Se é lícito ou não montar um Estado paralelo? O que essa gente quer que passemos a debater? Se, sob certas circunstâncias, é lícito agredir o Estado de Direito? Ninguém ainda está condenado, é verdade — e, provavelmente, dadas a lentidão da Justiça e a embromação de recursos, nada vai acontecer. Mas esperem aí: há uma acusação formalizada pelo procurador- geral da República. Mais do que isso: há os crimes confessados; há os réus confessos; há aqueles, embora evidentes, ainda por provar.
Certo, terrivelmente certo, sempre esteve José Dirceu quando liderou o esforço contra a renúncia dos petistas — ou de quaisquer outros acusados. Por mais que ele tenha esperneado para manter o próprio mandato e para reaver os direitos políticos, sabia que estava condenado. Nem por isso, como se vê, perdeu o poder ou se obriga a andar de avião de carreira, junto com a arraia-miúda: todos nós. Apostou, como nenhum outro, no que deve considerar “resistência política” e sempre soube que o apparatchik petista era mobilizável: afinal, o partido não passou 25 anos aparelhando as instituições da República, imprensa incluída, por nada.
A exemplo das tragédias gregas, estamos sendo confrontados com o mais profundo de nós mesmos. A eventual reeleição dos mensaleiros — e fico sabendo que Valdemar Costa Neto mostra impressionante fôlego em campanha pelo interior de São Paulo — bem como a do presidente Lula porão o Brasil num novo patamar, inferior a tudo o que já tivemos até agora. Sim, senhores: os efeitos podem ser mais deletérios do que os da ditadura. Naquele caso, sempre restava a esperança. E a todos estava claro, inclusive aos ditadores, que se vivia um período de exceção. O PT inova e entroniza a bandalheira como regra. E, se assim estamos, não adianta negar, é porque é isso o que merecemos. Como na porta do inferno, melhor deixar a esperança do lado de fora.

[reinaldo@primeiraleitura.com.br]Publicado em 25 de abril de 2006.

2006-04-22

A estratégia nefasta

Alguns foram inocentes úteis. Outros sabiam o que estavam fazendo. A maior parte, no entanto acreditou em uma moralidade estranha, bem brasileira. Eu disse aqui o que achava a respeito, mas não custa explicar de uma maneira mais simples, para que todos possam entender como viemos parar nesta situação.

As cartilha básica para chegar ao fundo do poço é esta:

  1. Empresários honestos devem ser trucidados. São a causa de todos os problemas do país. Vamos chamá-los de "elite" e re-definir a palavra para que tenha conotação negativa. Todos os problemas que não puderem ser atribuídos aos empresários serão atribuídos aos estrangeiros, fortemente vinculados à "elite".
  2. Vamos tomar as universidades com gente de segunda que chamaremos de "intelectuais de esquerda" e massacrar tudo o que se oponha à propaganda imbecilizante que estes vão dispersar.
  3. Vamos re-escrever os livros didáticos e infantis e colocar Lula e Zé Dirceu como heróis fundadores da democracia no país.
  4. O Brasil é um país especial, abençoado por deus. Por isso, não será necessário fazer esforço para vencer. Basta ser pilantra. Colar bastante na escola e faculdade garante um futuro brilhante. Ensino de qualidade deve ser combatido, pois é contrário à revolução.
  5. Sabotar todos os esforços para que a Justiça funcione. Ela só vai atrapalhar o esforço revolucionário.
  6. Sabotar toda e qualquer privatização. Ainda bem que pelo menos os telefones funcionam no Brasil, graças ao fato do PT não ter conseguido sabotar a privatização das teles. Quando forem eliminados os empresários, todos os empregos serão estatais.
  7. Usar dinheiro do Estado para financiar piquetes e ataques dirigidos aos inimigos políticos ou empresários. A baixaria afugenta as "elites". Aliás quanto mais forem embora, melhor. Não queremos um grupo de oposição organizado, queremos?
  8. Fazer com que as regras sejam tão complicadas de modo a forçar todo mundo a ser fora-da-lei. Isso vai ajudar quando tivermos o poder e quebrarmos as leis. Vamos poder dizer que todo mundo faz igual.
  9. Usar dinheiro do Estado para financiar os nossos amigos e montar um estado paralelo de Sem-terra e Sem-teto, com cursos especiais, caso venhamos a precisar de guerrilheiros para garantir o poder no futuro.
  10. Minar as estatais e a administração pública com pessoas de nossa confiança para ajudar a destruir todas as instituições hostis à nossa causa.
  11. Re-definir a educação: mais educado é ruim. Identifica-se com a "elite". Bastardo é bom, baixaria é bom e analfabeto é super-demais. Temos que passar esses conceitos com entusiasmo. Não queremos que ninguém seja capaz de ler mais de uma página por dia. Isso tornaria as pessoas demasiado críticas, e poderiam vir a perceber nossos planos reais. Os analfabetos vão se sentir valorizados, e sua arrogância vai nos ajudar na causa nobre.
  12. Direcionar toda a comunicação aos analfabetos e ignorantes. Marketing para classes que tiverem algum senso crítico está fadado ao fracasso mesmo. De qualquer modo a tiragem de jornais e revistas no Brasil é tão pequena comparada com a massa de ignorantes que não faz a menor diferença se falarem mal da gente mesmo.
  13. Comprar a Globo.
Por mais que eu tente ver pura incompetência nesse governo, não consigo tirar da cabeça que o que está acontecendo está simplesmente mencionado nos itens acima. Isso não é incompetência: é marketing e estratégia de primeira qualidade. Enojar as pessoas de bem a ponto de paralisá-las. Se o objetivo é tomar o poder no Brasil, já estão quase lá. A estratégia é nefasta e inescrupulosa demais. Ninguém parece perceber. Ninguém quer perceber.


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Veja também este vídeo:






2006-04-21

The Coffee Plunger

Um bom café de manhã cedo. Era só o que ele buscava. Recém chegado, estava cansado do instantâneo, rápido, constante mas sem graça. Algumas semanas de estadia o fizeram buscar o óbvio, uma máquina, um filtro de papel...

O mercado tinha sido um achado... as bancas de frutas, os queijos e os patês... azeitonas e tomates secos, as carnes, aves, manteiga a granel. As mesas na calçada, as vitrines do café à francesa. Mas não encontrou o que esperava. Existe, mas não temos. Esta máquina de expresso... não, não, só queria uma máquina de café, até a velha meia serviria... como pode ser que não existisse? O homem da loja sacode a cabeça: não temos. Afinal de onde você vem? Não sabe como faz café?

Paciente, ele finge não saber. Talvez fosse a melhor maneira de descobrir, pensa. O homem, incrédulo, mostra muitas caixas. Diferentes formatos e tamanhos, uma infinidade de variedades e estilos: Plunger... Plun-ger. Coffee Plun-ger.

Nunca havia visto algo assim. Desconfiado escolheu o menor, o mais barato. Como se usa? O homem olha intrigado. Afinal responde de má vontade: põe o pó aqui, água quente, e a tampa. Espera um pouco, pressiona o embolo e serve. Uma moça na loja começa a rir. O homem fica com raiva, tinha que atender os outros clientes. Parece fácil, pensa ele e leva o plunger para casa. No caminho, para em um mercado para comprar café. Encontra um, moagem especial para plunger. Que seja.

Uma vez em casa, abre o pacote. Trazia como brinde mais café, especial para plunger... e um manual de instruções. Estava desmontado, mas uma foto na caixa não deixava dúvida de qual a aparência da coisa. Um ar vitoriano... tornado óbvio pela palavra "Vittoria" escrita no vidro em letra cursiva. Um corpo cilíndrico de vidro, um becker alto, emoldurado em uma grade dourada. Como apoio quatro pernas de chapa dobrada em forma circular protegiam o fino vidro do copo.

Esquentou a água, pôs o pó e depois a água quente. Imediatamente o aroma familiar encheu a cozinha. Nessa manhã o sol entrava forte pela janela, iluminando o vitoriano copo. Podia ver os grãos nervosos, subindo... descendo... subindo junto com uma espuma escura e tímida. Que cor bela, indecidida entre o vermelho e o dourado, tons de marrom que simpatizavam com a moldura. Decidiu bater o plunger delicadamente na pedra da mesa. Que perfeito amortecimento os pés redondos forneciam! A vibração levantava uma espuma clara enquanto os grãos desciam lentos. Hora da ação: pôs a tampa e baixou lentamente o pistão. Os grãos se aglomeravam em uma fina grade no êmbolo, filtrando o líquido, de baixo para cima, a resistência aumentando por causa do acúmulo de grãos, que filtravam ainda melhor. Que equipamento interessante!

Perdeu a conta de quantas vezes repetiu o processo nessa manhã. Cada vez de forma ligeiramente diferente, esperando mais ou menos, batendo ou não na mesa, força no êmbolo ou deixando descer lentamente. À medida que se deixava encantar pelas cores e aromas a certeza: nunca gostaria mais de nenhum outro plunger: aquele era o perfeito, ancestral de todos os demais e nunca superado. O brilho do sol só se encarregava de queimar a imagem perfeita em sua retina, garantir que a sensação nunca se perdesse.

Mais tarde, no bonde, fechou os olhos e ainda via os grãos iluminados pelo sol da manhã. O suave movimento das cores e a lembrança dos aromas fizeram-lhe companhia pelo dia inteiro. Quando o sol estava se pondo, tingindo as nuvens de tons pastel teve uma idéia: voltaria para casa e escreveria, escreveria sobre o plunger.




2006-04-19

Piada de loira

Estávamos naquele momento do jantar em que já havíamos terminado o prato principal. O salmão com molho de maracujá estava divino, muito bem acompanhado com um risoto de espinafre. Acho que o toque mágico foi dado por um excelente Chardonnay chileno. Eu olhava os copos de cristal ainda contendo o líquido um pouco dourado e os belos pratos sobre a toalha rendada, assim como o arranjo de flores pequenino ao lado de cada prato. Ao fundo ouvia-se uma música sutil. Devia ser uma serenata de Mozart.

Tive sorte. Eu estava sentado em frente à Ana. Bonita morena, carioca, sabia se arrumar muito bem. Era uma verdadeira artista. Nessa noite estava usando um colar com figas, muitas figas de pedra coloridas no decote. Os homens passavam-lhe perto e diziam: "Bonitas figas, Aninha!" ao que ela respondia com um sorriso de desmanchar a alma.

Alguém começou a contar piadas de loira. Em certo momento a Ana diz:

"Eu tenho uma! Eu sei uma! Bom, na verdade não é de loira... deixa eu ver... acho que não faz diferença... não, não faz diferença mesmo."

Perguntaram-lhe: "É de loira ou não é?" ao que respondeu: "Não é mas vou fazer com que seja..." Todos os olhos se voltaram para ela. Eu não precisava nem virar o rosto, ela estava aí mesmo, pertinho, na minha frente. Ela começa, minuciosa:

"Foi em um edifício de oito andares, em Copacabana, um apartamento por andar. Era um prédio pequeno, mas muito bem cuidado. O Zelador, seu José, tinha trabalhado ali por vinte e cinco anos e estava a ponto de se aposentar. Todos gostavam muito dele, ele era um amor... bom, todos menos um, né? O morador do primeiro andar, que também era o síndico do edifício, detestava o seu José. Odiava ele mesmo... Fora esse, todos gostavam muito dele. Paravam para bater papo, seu José era muito inteligente e atencioso, amigo mesmo."

Eu me perguntava onde estava a piada de loira, mas só olhar para a Ana gesticulando e descrevendo as minúcias já valia a pena. Ela não parecia ter pressa alguma.

"Uma noite, teve uma reunião de condomínio. Um dos moradores sugeriu que o condomínio pagasse algo a mais para seu José, que estava para se aposentar e sempre tinha sido tão bom funcionário. Imediatamente o síndico pediu a palavra para se opor. Disse que não havia nenhum motivo para pagar nada a mais, a rescisão já seria suficiente. Na verdade o síndico estava furioso. Não podia nem ouvir falar de seu José, de tanta raiva que tinha dele. O outro morador insistiu, houve um bate-boca na reunião e no fim ficou decidido que cada um dava o que quisesse para o zelador. Ficou decidido que o seu José passaria em cada apartamento para se despedir e receber um presentinho de cada um. O síndico não gostou do resultado. Saiu da reunião praguejando."

Eu me perguntava se a Ana estava era caçoando da gente. Ela continuava, entusiasmada, mantendo a atenção de todos. A maior parte dos que estavam na mesa queria era um pretexto para continuar olhando para ela...

"Seu José ficou sabendo do resultado, e ficou preocupado. Sabia que o síndico o detestava, e estava pensando se devia ou não comparecer ao apartamento do primeiro andar. Ele estava certo de que o ódio do síndico era total, ainda que não soubesse a razão para tanta raiva. Enquanto pensava, subiu ao elevador, e se encontrou com a mulher do síndico, que também gostava do seu José. Ela era muito bonita e..."

"Loira!"
- dissemos todos, pensando por que é tão comum calhordas se casarem com mulheres bonitas...

"É. E muito bonita mesmo... Aí o seu José falou pra ela que achava melhor não passar lá no primeiro andar e ela disse para ele não ser bobo, que o marido dela no fundo gostava muito dele também, só que tinha vergonha de expressar seus sentimentos. Disse que ele até tinha separado um presentinho para ele, nada de mais, só para expressar a sua gratidão, que ele podia vir sem problemas. Seu José, que como todo bom zelador também era bem desconfiado, ficou pensativo. Sempre achou que o síndico o detestava. Por via das dúvidas decidiu ir primeiro ao oitavo andar e foi descendo. Em cada apartamento, o seu José recebia alguma coisa, dinheiro, cheques. Teve até um pessoal que chorou, emocionado. "

"Chegou a hora do fatídico primeiro andar. Seu José até pensou em desistir, mas no fim pensou que não tinha mesmo nada a perder. Tocou a campainha. Para sua surpresa atendeu a mulher do síndico vestida em uma camisolinha curtinha de seda, chinelos cor-de-rosa com um pouco de salto..."

Ana descrevia os detalhes com precisão. Já estávamos enxergando a loira...

"E pegou na mão dele e disse para ele ficar tranquilo, e levou-o para o quarto. Seu José não podia acreditar no que estava acontecendo, mas se deixou levar. Na verdade nunca tinha se sentido tão feliz como nesse momento em toda a sua vida. A moça foi um encanto com ele."

"Depois de transar seu José já se preparava para ir embora pois não esperava ganhar mais nada na vida. A loira disse para ele esperar um pouco, que tinha uma outra surpresa, e pegou na mão dele e o levou para a cozinha. Lá sentou-o à mesa muito bem posta, com queijinhos, frutas, um café, tudo muito arrumado. Seu José estava boquiaberto e comeu, feliz da vida. Uma coisa o intrigou enquanto comia. Do lado do seu prato havia uma moedinha de vinte centavos. Perguntou para a moça o que era essa moedinha."

"Esta moeda? É que meu marido disse pra mim: 'Você fode ele e dá só vinte centavos.' Agora, o lanchinho... foi idéia minha!"

Todos riam histericamente. Aninha tinha se superado realmente. Notei entretanto que uma pessoa não ria, o marido de Ana, sentado a seu lado. Ele parecia meio chocado, meio boquiaberto... Comecei a me lembrar... não é que eles moravam em um prédio em Copacabana?






2006-04-14

O Seqüestro da Culpa

Orfeu Negro (veja aqui) provavelmente não tinha a intenção de iniciar a reviravolta. Talvez ao fazer este filme a idéia tenha sido colocar os problemas de maneira mais romântica, para que espíritos nobres pudessem ser sensibilizados e ajudassem. Mas não se deve ajudar a quem não pede ajuda (aqui). O motivo principal é que quem não se digna a pedir ajuda não tomou ainda consciência do próprio problema, e a probabilidade da ajuda ser bem sucedida é muito baixa. Por outro lado, o filme pode ter ajudado a posicionar a favela de forma a poder ser utilizada como uma espécie de eldorado, um ideal de pureza a ser perseguido.

Eu acho que as favelas deveriam ser demolidas e ponto. Destruídas, e substituídas por algo útil. As pessoas devem ser colocadas em conjuntos habitacionais com endereço e segurança do Estado. Os traficantes, presos. Entretanto, no Brasil, isto é Tabu: quem realmente detêm o poder as usa como trampolim eleitoral, refúgio do tráfico, centro de recrutamento de mulas e por aí vai. Querendo ou não Orfeu Negro iniciou um caminho que não devia ter sido começado: a eternização da favela como ápice da cultura nacional.

O velho pensamento de esquerda, com a sua lógica furada da luta de classes, quer que os tem algo carreguem a culpa de outros não terem. A eternização da pobreza interessa aos que querem o poder de transferir renda, que querem o agenciamento da transferência forçada dos ricos aos pobres. Não é um agenciamento desinteressado: em troca querem o poder absoluto. A culpa atribuída aos que tem algo é uma ferramenta que usam em seu favor: tentam usá-la como arma de propaganda para tentar angariar apoio entre os que acabam por se sentir culpados.

A verdade é que os ricos são a força do progresso do mundo. É algo tão óbvio que não sei como no Brasil ninguém parece entender. Como exemplo, pensemos o que teria acontecido na terra de Macunaíma se ela não tivesse tido contato com o mundo até hoje. Idílico éden ou índios vivendo em ocas e morrendo aos 14 anos depois de parirem 5 vezes? O caminho do progresso não tem volta, isso porque é melhor que o que havia antes. Hoje, sem contato com o exterior, no Brasil não existiriam carros, nem casas, computadores, estradas, agricultura, tratores, tudo que é relacionado com tecnologia. Na verdade, gostaria que alguém me indicasse algo que foi inventado ou descoberto no Brasil. E não me venham com Santos Dumont, que era francês e cujos trabalhos desenvolveu na França.

Se pensarmos em ricos e pobres em uma sociedade é ainda mais óbvio: as necessidades de ricos são o ganha-pão dos pobres. Se todo mundo precisar apenas de uma cesta básica, a economia entra em colapso. Que o diga Cuba. Sem necessidades sofisticadas, toda a estrutura do sistema econômico converte-se em nada. Se houver demanda de iates, alguém precisa construí-los, pintá-los, fazer manutenção, instalações elétricas, painéis solares, eletrônica, radar e por aí vai. O que os brasileiros não entendem é que se todo mundo se contentar com a cesta básica, nem isso vão conseguir. É Economia básica. Em Cuba falta até sabonete e as pessoas se matam para atravessar para Miami em balsas feitas com sacos de lixo. Culpam os EUA porque eles não compram o açúcar e os charutos cubanos. Não creio ser este o problema.

O jogo da culpa tem um componente nefasto: só sente culpa quem é capaz de sentimentos mais elevados. A batalha é desleal. Perde quem sente. Quem quer incutir culpa não só é insensível mas não tem absolutamente nenhuma ética ou moral. É o fim do lixo. São criminosos que estão mais próximos da bestialidade, mas que percebem que podem manipular. Em sua frieza sentem ódio, porque se sabem inferiores aos que sentem de verdade. Manipular e tirar é o que lhes resta. Não se pode aprender a sentir, uma vez adulto.

A culpa é de quem cede. É de quem entra no jogo de aceitar as vantagens oferecidas pelo sistema podre. É de quem não reclama. Quem não exige que haja lei. De quem não se importa se não é cumprida. De quem se deixa usar. E de quem aceita atenuar seu próprio sentir, amortecendo-o para se igualar àqueles que o manipulam. Destes é a culpa.











2006-04-11

O Seqüestro da Tolerância

Manhã, tão bonita manhã,
Na vida, uma nova canção
Cantando só teus olhos,
Teu riso, tuas mãos,
Pois há de haver um dia
Em que virás.

Das cordas do meu violão,
Que só teu amor procurou,
Vem uma voz
Falar dos beijos perdidos
Nos lábios teus.

Canta o meu coração,
Alegria voltou,
Tão feliz a manhã
Deste amor.

(Manhã de Carnaval - Luíz Bonfá)


Era uma fria e escura tarde de inverno, em um trem entre a Alemanha e a Austria. Uma mãe jovem e sua filha estavam na mesma cabine que eu. A pequeninha queria brincar comigo. Brinquei, claro... a menininha era um doce. A mãe observa, entretida com as idas e vindas da garotinha, que levava um brinquedo, e sentava uma boneca no chão, e empilhava uns cubos, e falava, falava essa língua universal que não diz nada mas diz tudo, cuja entonação já aponta como se resolverá a menina no futuro, como vai lidar com o mundo, esse mundo pequenino de brinquedo...

A mãe me olha e faz a pergunta fatal... "De onde você é?" e respondo encabulado, baixinho "Brasil...?" Inesperadamente, os olhos dela brilham... "Uma vez vi um filme brasileiro... lindo" diz ela, "Orfeu Negro". Totalmente surpreendido, ouvi imediatamente na cabeça as estrofes cantadas por Eliseth Cardoso, e nesse momento não estava no trem escuro, via o morro, via o mar e a voz linda acompanhando o andar de alguém, a voz cheia de esperança e beleza, o calor... Como de um golpe, aquele filme, que terei alguma vez visto em um pequeno televisor, era maior que o mundo.

Conversamos sobre o filme, sobre o Brasil. A pequenina, claro, comentava também, intercalando interjeições, tranquilamente inserida na conversa. Falamos sobre o carnaval, os morros, as favelas, as pessoas que se juntam para fazer algo, neste caso o espetáculo do carnaval.

Muitos anos depois, a inesperada visita romântica da favela a um trem europeu ainda está marcada em minha mente. Como podia ter chegado ali? Como uma favela imunda tinha atravessado o oceano Atlântico, para, fantasiada de utópica realidade, entrar em uma cabine de primeira classe onde uma menina brincava inocentemente com seus brinquedos, como as crianças da favela com as latas no barro?

Por lindo que fosse, hoje sei um erro. A fantasia da favela, convertida em realidade dura, não vale uma utopia civilizada. A favela é uma hedionda expressão de miséria e se reproduz como um cancer. O lindo filme ajudou a cristalizar a cultura favelosa no nosso país, o maloqueirismo. O buraco cada vez mais fundo e fácil de gente que vai e vem com uma lata d'água, o romantismo falso de uma Uganda, elevada à categoria de éden. Gente humilde ou falsa, ladrões e faxineiros, traficantes e bicheiros, professoras e policiais. O buraco da deseducação e do escárnio, o inferno cristalizado para manter a corrupção oficial, os votos garantidos na ameaça, os moleques, bastardos, dominando a cultura popular e cheirando cola. De lindo não tem muito. Entretanto, comparando com a incompetência de resolver, endeusar o lixo é muito mais fácil. As pessoas podem admirar o lixo chic. Ai de quem não apreciar... Preconceituoso! Intolerante! Lata d'água na cabeça, Maria. Teu filho brincará no barro. Terá verme na barriga. Tudo estará bem. Será lindo.






2006-04-06

Nunca ajude a quem não pede ajuda


Estou re-editando um post antigo que fez sucesso, sobre Richard Feynman e sua visita ao Rio em 1953. Tive a grata surpresa de saber que o livro que mencionei lá está sendo editado pela primeira vez no Brasil, sob o nome "O SENHOR ESTA BRINCANDO, SR. FEYNMAN? e pode ser comprado através da Livraria Cultura. Basta clicar na capa:




As notas de aula de quando Feynman esteve no Rio de Janeiro estão aqui:


O livro vale mesmo a pena. Além de contar algo de sua visita ao Brasil, ele cita alguns interessantes eventos ocorridos nos bastidores do Projeto Manhattan, o codinome do esforço de pesquisa que resultou no desenvolvimento da primeira bomba atômica, na segunda guerra. Segue o meu post.




Nunca ajude a quem não pede ajuda

Era claramente uma idéia genial. Usariam fundos de entidades internacionais para promover a cultura, promover o intercâmbio de idéias. No mundo pós-guerra acreditava-se que essa seria a melhor maneira de evitar os horrores que decorreram da falta de entendimento, das diferenças culturais.

A Ciência seria o meio ideal. Como está baseada no método experimental, até os mais recalcitrantes místicos tem que, no fim, concordar com os resultados, se seguirem preceitos lógicos. O estímulo ao ensino de ciência era a forma de estimular o pensar, erguer a humanidade a um novo patamar. Não poderiam ter sido mais nobres as intenções.

A idéia era enviar professores de grande prestígio a países sub-desenvolvidos. Esses professores lecionariam em universidades por um ano e voltariam para seus países de origem. Os seus salários seriam subsidiados por organismos internacionais, efetivamente transferindo riqueza intelectual para lugares que jamais teriam como contratar gente deste gabarito. Nada poderia sair errado. Era uma idéia perfeita.

Um deles, o Professor Richard Feynman, adorou a idéia. Ele ganharia posteriormente um premio Nobel em Física e estava em um ano sabático. Queria mudar de ares. Pensou em aprender Espanhol, mas viu uma moça bonitinha entrando em uma aula de Português... e entrou na sala. O Rio de Janeiro o seduzia. Não teve dificuldade em conseguir a transferência para uma universidade carioca. O ano era 1953.

Feynman, para quem não sabe, era um tipo especial. Como professor, sempre aparecia com novidades sobre como atacar um problema, remanejar matematicamente, virar tudo pelo avesso, sempre de alguma maneira que fizesse sentido. Era entusiasmado com a vida, apesar de ter sofrido bastante. Casou-se com sua paixão da adolescência, que morreu imediatamente depois. Mesmo assim era um tipo que enxergava tudo de maneira positiva, comunicava-se claramente e entusiasticamente e tinha uma força vital impressionante. Era muito querido por seus alunos, e formava-se naturalmente uma turma ao redor dele. Uma turma que compartilhava de seus anseios. Há um filme baseado na vida dele. Nunca assistam. É uma porcaria. Matthew Broderick é um ator de quinta categoria, e ele é quem faz o papel de Feynman. Em lugar do filme, leiam os seus livros. Um dos mais interessantes é "O senhor está brincando, Sr Feynman?". Quem gosta de Física pode se deliciar com suas "Lectures". É um gênio de primeira grandeza, e sempre se pode aprender com eles. Mas há uma coisa fenomenal em Surely you're joking. Algo que notei, mas nunca tinha pensado em profundidade até ver o fenômeno claramente descrito no livro.

Bom, como dizia, era 1953. Feynman fica encantado com o Rio. Surge então um problema misterioso quando começa a dar aulas. Há uma debandada geral de alunos. Eles vem mais tarde, em um pequeno comitê, para explicar que eles não fariam as lições pois eram muito simples e eles teriam que estudar para materias do curso (esta era fornecida como optativa). Então, Feynman, que não entendeu direito como as coisas funcionam no Brasil, tratou de passar tarefas mais difíceis. Nada deles fazerem.

Notou que só dois ou tres alunos assistiam ao curso e faziam o que era pedido. Quem quiser as notas de classe daquela época veja aqui. Notou também que nenhum destes tinha estudado anteriormente no Brasil. Eram estrangeiros ou filhos de estrangeiros. Intrigado, começou a estudar mais profundamente os métodos de ensino no Brasil. Notou que a maior parte dos outros, que pareciam bons alunos, eram na verdade papagaios que estudavam para atravessar as provas. Todo o sistema era construído para esses, que na verdade não aprendiam: decoravam. Ele verificou com cuidado o tipo de prova que era oferecido e por que não se detectava o problema. Notou também que ninguém tinha interesse em mudar nada. Os alunos estavam satisfeitos. Os professores também.

Frustrado, em seu discurso final, na formatura, explicou, em Português: "No Brasil não se ensina Ciência".

Todos ficaram assustados. O que ele estava fazendo? Explicou a reação dos alunos e dos outros professores, descreveu com cuidado os problemas que encontrou. Tudo o que conseguiu foi desencadear fúria dos acadêmicos, dos patrocinadores, dos jornais, de todo o mundo.

Feynman sentiu que tinha a responsabilidade de avisar, de contar a todos o que ele viu. Foi ignorado soberanamente. Esse lugar é de uma arrogância incrível... Este professor que até aprendeu Português, foi batucar na escola de samba e tentou com toda a sua força ajudar... só foi atacado. Eu, que teria adorado fazer um curso com ele, entendo bem o que ele quis dizer. 30 anos depois, nada mudou. 50 anos depois, não sei, mas apostaria que tudo continua igual, se não tiver piorado.

O grande erro é, como uma vez um amigo comentou, que não se deve ajudar a quem não pede ajuda. Isso é tão comum... você vê os erros, sabe resolver, mas quem erra não tem interesse em ser ajudado. A verdade é que a primeira etapa para a melhora é sempre o reconhecimento do erro, baixar a crista. A solução vem da vontade de resolver, e aí, nesse instante uma mãozinha vem a calhar. Eu acho que no caso desse país o reconhecimento está demorando muito mais do que devia.