2006-06-30

O mercadinho da fazenda


Tenho um primo que mora na Suíça, em Zürich. Ele é louco por lugares estranhos e "exóticos", talvez por que o lugar em que ele mora é demasiado bonito e organizado. A gente sempre parece querer o oposto do que a gente tem, não é mesmo?

Eu o estava visitando e, uma manhã, ele me diz:

"Vamos passear um pouco, quero lhe mostrar algo."

Saímos de carro. Em poucos minutos já estávamos fora da cidade, entre colinas verdes e florestas de pinheiros. Em uma estrada solitária, em uma dessas colinas silenciosas, havia umas banquinhas cobertas com teto de lona. Ele pára o carro em frente às tendas.

Era um mercado. Todas as frutas e as verduras, assim como as geléias e conservas, estavam bonitas e arrumadas, com os preços indicados claramente, e uma balança bem à vista. Tudo estava perfeito, mas faltava algo... ninguém, absolutamente ninguém estava atendendo.

Os produtos são de uma fazenda local, explica meu primo. Antes mantinham pessoal, mas agora eles montam o mercado e vão fazer alguma outra coisa da vida. É que descobriram que quando não tem ninguém atendendo os lucros são maiores, não pela diferença do custo de mão de obra, mas porque os clientes terminam sempre pagando a mais.

Esta é uma faceta interessante do comportamento dos suiços: se não há ninguém para prestar contas eles arredondam a mais, só para terem certeza de não estarem enganando ninguém. Não há vantagem alguma em fazer malandragem: se os donos da barraca descobrirem eles vão parar de vender desta maneira. Ter um mercado self-service 24 horas como este é uma comodidade que ninguém quer perder.

Fizemos as compras, depositamos o dinheiro em uma caixinha, e voltamos para casa. O meu primo diz que há também plantações de rosas onde cada um vai e corta a sua, na saída depositando o valor correspondente. Ninguém à vista. Ninguém por perto.







2006-06-28

O PT tem muito medo do Fernando Henrique



"A esperança que esse governo levantou foi corroída como cupim pelo desmazelo, pela corrupção, os escândalos, o desrespeito à democracia e por um tipo de governo do eu, eu, eu. Vão ver o que vai acontecer com esse eu, eu, eu nas urnas."


Fernando Henrique Cardoso


Afinal, nunca antes neste país houve uma quadrilha tão descarada... espero que FHC esteja certo a respeito dos votos!



2006-06-22

A turma do "veja bem"

- Mas isso é roubo!
- Olha, veja bem, você não está entendendo. Aqui a coisa funciona assim...

Estou farto de gente que tenta mudar as regras mais básicas com essa frase barata, implicando que é a gente que não enxerga, não vê a sutileza da situação. Roubo é roubo. É interessante notar que sempre que reclamo aparece alguém inicialmente com essa atitude 'benigna' e quando se enchem e percebem que não vão conseguir nada dizem:

- Lá vem o Zappi novamente com essa sua moralzinha de primeiro mundo.

Moralzinha de primeiro mundo? Quer dizer que já está estabelecido: a moral do Brasil é outra. É moral de terceiro mundo. Vá saber o que isso quer dizer.

Vale a pena ver o vídeo abaixo. Já apareceu no Fantástico, mas é sempre bom rever. O governador conversa com os deputados, e se faz de bobo. E eles, entusiasmados, tentam convencê-lo de que isso não é corrupção, veja bem... Repare especialmente na deputada Ellen Ruth, vejam como Ellen Ruth é repugnante.



2006-06-21

Um preso australiano e os bunda-moles brasileiros



Hoje ouvi uma notícia interessante. Um preso australiano, Ivan Milat, condenado pelo assassinato de sete pessoas, ganhou um prêmio por bom comportamento. Consistia em um televisor e uma torradeira. A razão do privilégio era simplesmente que o tal Milat não tinha tentado fugir nem se suicidar recentemente.

Só quero deixar claro que a prisão australiana (Goulburn's Supermax) é uma prisão de verdade, sem direito a nada, muito menos a telefones celulares e outras maravilhas do sistema prisional brasileiro. O cara nunca sairá de lá.

Mesmo assim, um grupo de defesa das vítimas (aqueles que deveriam ser defendidos) falou com o premier de New South Wales (o governador) e este suprimiu o privilégio imediatamente. Foi visto como uma afronta contra as vítimas deste degenerado, e com razão.

Acabo de ler uma entrevista do Marcola que foi publicada no Globo. Tenho que admitir que ele enxerga a situação brasileira de maneira completamente lúcida. No Brasil há pena de morte, sim senhor. O juiz supremo é ele. E todos fazer amém.

Sem contar que as leis estão torcidas a favor dos criminosos. Por que? Porque os que as torcem recebem do crime organizado, de uma maneira ou de outra. Por que o assassino de um casal que estava acampando em 2003 vai ser solto? Por que os assassinos de Daniela Perez foram soltos, aqueles maloqueiros que mataram a moça a tesouradas em um carro? Por que? Por que?!!??

Que posso dizer? É porque o Brasil é mesmo um país de bunda-moles.



2006-06-20

O Lula é asqueroso



Tal pai tal filho. Veja este artigo:


Edição 1961 . 21 de junho de 2006
Diogo Mainardi

Teodoro e Teodorino

"Teodoro Mbasogo é o ditador da Guiné Equatorial. Teodorino é seu filho. No mundo inteiro, só consegui encontrar esses dois casos de presidentes em exercício cujos filhos controlam canais de TV: Lula e Lulinha, Teodoro e Teodorino"
Lula e Lulinha são como Teodoro e Teodorino. Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, conhecido como "O Chefe", é o ditador da Guiné Equatorial. Está no poder desde 1979. Teodorino é seu filho. Tem um canal de TV. Internetei para cima e para baixo e, no mundo inteiro, só consegui encontrar esses dois casos de presidentes em exercício cujos filhos controlam canais de TV: Lula e Lulinha, Teodoro e Teodorino.

O canal de Teodorino é o RTV Asonga. O de Lulinha é o Play TV, antigo Canal 21, arrendado à Gamecorp pela Rede Bandeirantes. O contrato de arrendamento entre as duas empresas vale por dez anos. Inicialmente, a Gamecorp transmitirá seus programas por seis horas diárias, mas a idéia é se estender pelo dia todo. O sócio esperto de Lulinha, Fernando Bittar, é quem realmente manda na emissora. Lulinha é encarregado apenas de emprestar seu nome e embolsar os lucros.

Por mais de trinta anos, Lula e seus parceiros denunciaram o chamado coronelismo eletrônico, o sistema de favorecimento que garantiu a concessão de canais de TV, em nome próprio ou de parentes, a hierarcas nordestinos como José Sarney, Fernando Collor de Mello, ACM, Jader Barbalho, Garibaldi Alves, Albano Franco, Tasso Jereissati. Agora que Lulinha tomou posse de um canal de TV, ninguém parece se preocupar com isso, em particular os pelegos lulistas que controlam os sindicatos de jornalistas. Eu sempre desconfiei que o real desejo de Lula fosse virar um José Sarney. Pronto: virou. Lula e Lulinha são como Sarney e Sarneyzinho.

O arrendamento de um canal de TV pela Gamecorp não é só uma arbitrariedade política: é uma ilegalidade. Nas duas últimas semanas, amolei um monte de especialistas no assunto, que me apontaram todas as normas que estão sendo flagrantemente violadas pelos benfeitores de Lulinha. Eu sei que essas questões legais são uma chatice, mas a análise sobre o lulismo, por algum motivo, sempre acaba no mesmo lugar: no Código Penal.

Um canal de TV não pode ser explorado por uma empresa que tenha mais de 30% de seu capital social nas mãos de estrangeiros. Está no artigo 222 da Carta Constitucional. A Lei nº 10610, que regulamenta a matéria, considera "nulo qualquer acordo, ato ou contrato que, direta ou indiretamente, de direito ou de fato, mediante encadeamento de outras empresas ou por qualquer outro meio indireto", confira aos acionistas estrangeiros mais de 30% de um canal de TV. É o caso de Lulinha. O capital social da Gamecorp, de 5,2 milhões de reais, saiu quase integralmente da Telemar. A Telemar é uma empresa aberta, negociada nas bolsas de São Paulo e de Nova York. De acordo com os dados fornecidos pela própria operadora, os acionistas estrangeiros possuem 54,3% de seu capital social, superando amplamente o limite de 30%. Ou seja, o contrato de Lulinha é ilegal. Pior: é inconstitucional.

Lula, "O Chefe", não cairá por causa disso. Mas espero que seja o suficiente para melar o negócio de seu filho.
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Arnaldo Jabor:

2006-06-11

Surpreendentes mundos novos

Fico impressionado de como hoje em dia as pessoas parecem precisar de excitação para viver. Se um filme não tiver bastante sangue e pancadaria, ele é considerado chato. Efeitos especiais, velocidade, luzes, cores, tudo tem que ser fornecido pronto para que as pessoas se 'divirtam'. O Brasil não é chato: todas as manhãs o jornal traz alguma desgraça que vai afetar direta ou indiretamente a vida do leitor. Que tal usar como exemplo o evento promovido pelo PCC, que parou São Paulo? Pode-se chamar aquilo de qualquer coisa, mas chato? Uma carnificina a céu aberto, de dia ou de noite. Excitante e trágico.

Aqui na Austrália houve uma comoção nacional porque um moleque matou um gato. O problema é que o que ele fez foi gravado por uma câmara de video de um posto de gasolina. Durante mais de uma semana só se falou nisso. Pegaram o cara. Foi condenado a prestar serviços comunitários para a sociedade de proteção aos animais. Não sei se acho isso um tédio. O que sei é que firmas de publicidade se aproveitaram do assunto por meses. Uma das campanhas mostrava um boxeador gigantesco, suado e surrado, segurando um gatinho. Ele olhava para a câmara e dizia: "Quem mexer com meu gatinho eu arrebento de porradas!"

Melbourne fica no meio de uma baía, e o mar está normalmente muito calmo, sem ondas. As marés sobem e descem regularmente. De vez em quando, entretanto, ventos fortes sopram e ondas razoáveis aparecem do nada. Quando o mar está calmo e há algum vento os veleiros saem enlouquecidos fazendo com que a paisagem se transforme: as velas brancas indo e vindo parecem até de brinquedo. No inverno, entretanto, o mar é muito frio e poucos se aventuram a velejar... em resumo, no inverno é chato.

Moro perto do porto. Todos os dias sai um navio para a Tasmânia. No frio as mesas que ficam na calçada em todos os restaurantes e bares são pouco frequentadas. As ruas ganham um aspecto deserto, especialmente à noitinha, a ponto de ficarmos em dúvida se mora mesmo alguém por aqui. Como não temos nenhum grande parque de diversões ou 'Sea World' como em Gold Coast, o que dizemos? Que é chato.

Pego a bicicleta e saío pedalando. Há uma pista de uns vinte quilômetros de comprimento que beira a baía em direção leste. É lindo, no verão. As cores de inverno são mais apagadas, às vezes há névoa e chuvisca ou chove. Gosto muito, especialmente com névoa. Em St Kilda, a 5 quilômetros de casa há um pier longo que percorro também. Sentando nas pedras, de um lado pode-se ver os arranha-céus da cidade mas olhando para o lado oposto parece que a civilização deixa de existir. É uma ilusão fugaz. Continuo pedalando a leste, até Brighton.

A praia inteira está coberta de conchinhas. A água é transparente e às vezes arraias vêm até a praia. Medusas azuis e vermelhas são comuns também, assim como cardumes de peixes pequeninos. Sabemos que há algo vivo por aí quando as gaivotas ficam enlouquecidas. Algo para comer, na certa.

Os australianos dizem que a praia perto da cidade é chata. Eu acho que não... vamos ver. Em Brighton, há umas pedras. Aqui parecem ter origem vulcânica antiga e formam poças naturais, verdadeiros aquários, que enchem de água na maré alta e permanecem cheios durante a maré baixa. Dia após dia, ano após ano. São colonizados naturalmente por plantas e animais, moluscos e vertebrados. Em alguns, podemos ver um ou dois peixes solitários. Escolheram viver aí. É mais seguro que o mar aberto, além de ser mais quente.

A harmonia e beleza destes "aquários naturais" me surpreende. Ninguém mais parece se importar. Ao andar nas pedras, percebo que sou sempre o único fazendo isto: ninguém chega nem perto. As pessoas olham para mim com aquela cara de "cada louco com a sua mania"... não me importo, e continuo tirando fotos. Não consigo capturar na câmara os habitantes vertebrados deste aquário, eles fogem quando me vem, escondem-se atrás das algas, acham que sou algum predador, uma gaivota talvez. Bom, falo dos vertebrados como se fossem mais espertos do que os invertebrados, o que nem sempre acontece.

Em um desses "aquários" havia um polvo. Ele me viu e ficou bem fininho e literalmente escorreu de uma poça para a outra, saindo da água, esgueirando-se pelas frestas e deformando-se sem esforço, ora esticando-se ora preenchendo uma cavidade como se fosse uma grande gota de um fluido viscoso e pesado em baixo d'água. Intrigou-me saber qual o destino final daquele ser gosmento. Era totalmente claro que sabia o caminho, sabia exatamente por onde ir e onde queria chegar, e ainda como fazê-lo sem chamar a atenção. No fim entrou em uma poça e foi em direção a um minúsculo furo na pedra. "Ele não está pensando em entrar aí, está?" perguntei-me, impressionado. Não sei dizer como, mas ele entrou em um buraco que não tinha mais do que um centímetro de diâmetro, aparentemente sem muito esforço. Sumiu lá dentro. A sensação de 'ser' deve ser muito diferente para uma criatura inteligente que, de certa maneira, não possui forma.

Para as criaturas pequenas esses mundos são como florestas com diversos tipos de alga, que brilham ao sol. A água gelada da baía de Melbourne permanece aquecida pelo sol nas pedras durante a maré baixa, permitindo a reprodução de milhares de caracóis. À medida que eu andava, ouvia estalidos embaixo dos meus pés. Aproximei-me para ver melhor: eram minúsculos caracóis, de não mais de um ou dois milímetros de diâmetro, que existiam aos milhões na pedra seca. Eu os estava esmagando aos milhares, sem perceber. Nos aquários, caracóis de diversos aspectos subiam uns em cima dos outros. Era um interessante espetáculo de cor e movimento.

Em outro "aquário" encontrei uma concha gigante. Quando a levanto, um pequeno polvo grudado com suas ventosas na concha e compacto, redondo. Ele estava imóvel. Não havia como fazê-lo reagir: a imobilidade era sua última chance de vida. Este incrível ser refugiava-se no esqueleto morto de outra criatura. Pensei no Náutilus, um parente dos polvos que realmente possui concha. Por que os polvos a terão perdido? Agora tinham que usar as dos outros...

Não consigo parar de olhar para a água, que aqui tem uma cor impossível de descrever, um azul muito puro, uma cor realmente atraente. Não dá impressão fria nem úmida, é um azul confortável, decorativo, móvel. O que as estranhas criaturas dos micro ambientes acham dessa cor? Perigosa, tenebrosa, assustadora talvez? Parecem bem contentes em seus mundinhos aquecidos.

Continuo me perguntando por que as pessoas acham tudo sempre chato? O que lhes falta para que possam perceber o fantástico mundo à sua volta? Acho que nunca vou entender...

2006-06-08

Para ouvir Música


"Ohne Musik wäre das Leben ein Irrtum."
- Friedrich Nietzsche

Para muitos pode parecer um tanto pedante este começo. Entretanto eu não acho. "Sem música a vida seria um engano." Acredito piamente nisso. Muita gente não acha a música algo tão notável. As pessoas às vezes vem a música como um pano de fundo, como aquilo que fica 'faltando' em um filme, a trilha sonora.

É que a música tem que ser aprendida.

Muito tempo atrás, eu também não entendia. Não via qual a graça em ouvir durante 40 minutos uma orquestra acompanhando um solo de violino. Não enxergava o que era tão belo em fechar os olhos e deixar a música levar você... para onde? Confesso que faz bastante tempo, mas lembro da sensação. Acho que é a mesma coisa do que a sensação de um adulto quando se lembra, imagina-se criança e lembra perfeitamente como palavras escritas em um papel não significavam nada, não lhe diziam nada, simples manchas no papel. Um dia, miraculosamente, viu a luz e tudo fez sentido... bom, não foi tão depressa assim. Ele teve que aprender algumas coisinhas antes que tudo fizesse sentido.

Para não pensarem que sou um louco (ha ha ha, quanta gente acha isso...), eu fiz uma pesquisa com as pessoas que conheço que adoram música clássica. Aliás, dizer "adorar" é tratar o assunto com falta de respeito. Falo de gente que, como eu, não é capaz de viver sem música. Todos com quem falei tem algo em comum. Perguntei para eles como essa doença começou. As histórias variam superficialmente mas confluem para a mesma coisa. Todos eles se deixaram seduzir voluntariamente. Abaixaram as barreiras protetoras e deixaram a música entrar. O problema é que ficamos apaixonados para sempre pela primeira música que nos tocou... Não parece grave, parece?

Bom, vou contar a minha primeira vez. É notável o fato de que não há ambigüidade. É claro para mim que depois deste momento nunca mais fui o mesmo. Não foi aos poucos, todo o processo deve ter levado no máximo uma hora. Lembro do dia em que aconteceu, dos movimentos que fiz, tudo nítido. Meu pai veio da Alemanha e me trouxe um presente: uma fita cassete com duas sinfonias de Mozart. Eu incialmente fiquei meio decepcionado... o que eu faria com isso? Só ouça, disse o meu pai.

Alguns dias depois, em um momento em que estava tranquilo, não tinha nada para fazer e sabia que nada me interromperia durante a minha tentativa, peguei a fita. Traduzam isso hoje para CD, mas naquela época, em torno de 1970, uma fita cassete era o supra-sumo da tecnologia de áudio doméstico. Estéreo, Dolby. Uau! Peguei o cassete amarelo, "Deutsche Grammophon". Eram as sinfonias números 29 e 39 de Mozart, regidas por um maestro húngaro e uma orquestra alemã da rádio Bávara. Pus os fones de ouvido e liguei o som.

O que aconteceu a seguir foi um tanto decepcionante. Sim, ouvia os sons, sim, seguia as melodias, mas não compreendia o sentido daquilo tudo. Ouvi uma e depois a outra, não sem ficar perdido diversas vezes no meio delas. No fim, um tanto decepcionado, decidi ouvir novamente. Desta vez, miraculosamente, tudo foi diferente. Pelo fato de eu ter ouvido uma vez, as melodias já frequentavam a minha mente e a surpresa não era total cada vez que uma nova linha melódica entrava. Pos esse motivo podia me concentrar nos detalhes, já que a estrutura básica já estava meio gravada em minha mente. Nos detalhes é que estava a música. Nas pausas os suspiros, nos crescendos o descortinar de mundos, literalmente mundos novos de cor e forma. Digo cor e forma porque não há palavras para descrever este universo sonoro, não há como expressar em palavras. É como se, de repente, pudéssemos ver novas cores que nunca havíamos visto antes. Como as descreveríamos? Esta cor é mais assim, tipo mais assado...? Não. E não são só cores, são formas, são estruturas que variam continuamente na nossa frente. O mais impressionante é que de alguma forma as catedrais de som estão mais conectadas a nosso ser emocional do que nossa própria mente racional. Constituem um atalho ao mais profundo de nós mesmos.

Ouvindo a sinfonia pela segunda vez, o acorde maior com que começa se dissolve em uma espécie de oceano tépido ao mesmo tempo que uma linha decrescente, uma escala se destaca do fundo. Esta linha se destaca como se fosse tri-dimensional e se aproximasse de nós, sem jamais nos tocar diretamente, mas se a interpretação for diferente, a impressão também será diferente, mesmo tocando as mesmas notas. O toque humano é tão tremendamente necessário que, quando falta, a música se transforma em algo plano, como se o mundo pudesse ser descrito só com fotos em preto e branco. Perdem-se relevos, destaques, cores, formas, temperaturas, sopros, luzes, sol, calor. Quem não vê isso, ainda não entendeu o que é música.

Não sei se todos podem sentir o que sinto. Eu não podia, e aprendi. É mais fácil aprender com algo simples, Mozart por exemplo. Mas não adianta ficar repetindo ad infinitum um movimento de uma sinfonia, há que se estar aberto, há que receber e incorporar primeiro, sem entender realmente, da mesma forma como se decora um poema ou uma canção. Depois disso é que se pode sentí-lo, entendê-lo. Um amigo teve a mesma experiência com Schubert, acho que foi a nona de Schubert. Depois para mim veio Bach, uma Toccata e Fuga transcrita para orquestra magicamente por Eugène Ormandy. Nunca gostei tanto de nenhuma outra transcrição depois de ouvir esta. O concerto para violino em Ré de Bach com Yehudi Menuhin... as aberturas.

A partir daí foi tudo. Demorei um pouco mais para gostar de óperas, mas elas tem a sua graça. Os Lieds são como sutis poemas curtos... e por aí vai. Nunca mais fui o mesmo. Continuo apaixonado por quem me tocou pela primeira vez. Como um viciado em heroína, continua fixa na minha mente a imagem da minha primeira seringa. Em todos os momentos da minha vida posso identificar um acorde, uma relação de sons para cada movimento, para cada ação, para cada sensação. O meu mundo se expandiu e alcanço alturas antes impensáveis.