2006-07-20

Uma vida diferente



Ontem me peguei imaginando como seria a vida se eu fosse algo diferente. Como eu me sentiria se fosse um verme, por exemplo? E se eu fosse uma sanguessuga, um verme que está tão na moda no Brasil?

Não há dúvida que a vida seria diferente. Para começar seria cego. Provavelmente não distingüiria dia de noite, nem me importaria com isso. Ficaria no escuro, debaixo d'água, sentindo movimentos e vibrações. Estaria grudado em alguma pedra ou folha pela boca-ventosa por dias a fio, esperando aquela vibração tão especial que eu reconheceria entusiasmado: o movimento especial da comida, de algum animal com sangue dentro. Eu não me importaria de quem estaria sugando. Só estaria preocupado em que fosse bem sangrento. Se não fosse assim, uma sensação de desconforto tomaria conta de mim e eu desistiria, esperaria outra vibração, outro bicho. Mas se fosse um petisco sangrento, ah, que maravilha! Não soltaria de jeito nenhum, só quando estivesse tão cheio a ponto de não agüentar mais.

Uma vez satisfeito, um torpor tomaria conta de mim e me deixaria flutuar cegamente até uma folha ou pedra, onde tranquilamente digeriria a refeição, talvez por dias. Apesar disso a minha vida não seria um mar de rosas. Às vezes ficaria afundado na lama, teria que me contorcer para sair de lá. Só assim poderia ter chance de sobreviver. Outro problema seria encontrar uma outra sanguessuga para copular, talvez fosse possível seguí-la pelo cheiro. Deve ser difícil achar... Sem contar que existem animais que comem sanguessugas, como iria me defender? Não se sabe nem de onde o perigo vem: é uma conseqüência de ser cego, surdo e vermiforme. Se meu lago ou poça secasse, só me restaria uma morte lenta e agonizante no fundo lamacento. Não saberia para onde ir nem como escapar. Na verdade não saberia nem o que é um lago. Para piorar, parece que há sanguessugas que atacam outras sanguessugas... dessas também teria que tentar escapulir. No primeiro indício de dentada, teria que me contorcer enlouquecidamente para acabar em outro lugar, não sei se mais ou menos perigoso...

Tenho realmente uma grande sorte em ser uma pessoa. Nós, os humanos, não rastejamos nem sugamos o sangue de outros. Enxergamos, temos consciência e decidimos a própria vida, não somos escravos de instintos básicos. Não somos parasitas, não drenamos os fluidos vitais de outrem. Criamos, aumentamos o conhecimento do mundo, fazemos com que tudo à nossa volta melhore. Não precisamos grudar em nada nem em ninguém. Somos realmente livres.

Tem algo que me perturba, entretanto. Por acaso o que eu disse não é totalmente óbvio? Onde está o problema?

Antes de sair do Brasil, a minha repugnância com o deboche constante que é o PT de Lula chegou a um nível insuportável. Sonhava que saía de carro, dirigia de noite pela Nove de Julho, túneis, viadutos, avenida Paulista. Percorria São Paulo e buzinava a noite inteira. Sozinho. As pessoas olhavam e pensavam: "Quem é esse maluco que não pára de buzinar?" Alguns giravam o dedo ao redor da orelha, "É maluco, é?". Achava inacreditável que ninguém estivesse indignado, que todos à minha volta até se divertissem com o meu sofrimento. Estes não se importam em ser sugados até a alma, ou de ter a esperança subtraída de seu futuro.

É hora de ir embora. Sair do Brasil. Os incomodados que se mudem. Até imagino o coro de aplausos que suscitei: "Lá vai o chato. Agora poderemos... voltar a rastejar, sem que ninguém tente mudar o nosso jeito de pensar, jeito de não-pensar, nosso ir e vir repetitivo, nosso grande nada."

Pergunto-me o que será que os vermes sonham. Surdos, cegos e ávidos por algo para comer. Não sonham imagens e não sonham em mudar de vida, com certeza. Se sonhassem, sonhariam com a sensação deliciosa de plenitude, de estar tão cheio de sangue a ponto de não conseguir sugar mais nada. A esperança deles se resume à proxima boquinha, à próxima malandragem: pulo daqui, grudo neste, fujo daquele.

Para quem não quiser ser confundido com algum invertebrado, dou um conselho. Faça tudo o que os invertebrados são incapazes de fazer. Crie, escreva, leia, estude. Cante, dance, trabalhe duro, melhore tudo a seu redor. Discuta, organize debates. Nunca aceite a mediocridade. Viaje, fale com outros humanos. Mesmo se no início for difícil, não desanime: insista. Lembre-se sempre de que os verdadeiros vermes jamais sairão do chão, e vistos do alto eles não são nada.

2006-07-11

Um prêmio Nobel no Rio


Estou re-editando um post antigo que fez sucesso, sobre Richard Feynman e sua visita ao Rio em 1953. Tive a grata surpresa de saber que o livro que mencionei lá está sendo editado pela primeira vez no Brasil, sob o nome "O SENHOR ESTA BRINCANDO, SR. FEYNMAN? e pode ser comprado através da Livraria Cultura. Basta clicar na capa:




As notas de aula de quando Feynman esteve no Rio de Janeiro estão aqui:


O livro vale mesmo a pena. Além de contar algo de sua visita ao Brasil, ele cita alguns interessantes eventos ocorridos nos bastidores do Projeto Manhattan, o codinome do esforço de pesquisa que resultou no desenvolvimento da primeira bomba atômica, na segunda guerra. Segue o meu post.




Nunca ajude a quem não pede ajuda

Era claramente uma idéia genial. Usariam fundos de entidades internacionais para promover a cultura, promover o intercâmbio de idéias. No mundo pós-guerra acreditava-se que essa seria a melhor maneira de evitar os horrores que decorreram da falta de entendimento, das diferenças culturais.

A Ciência seria o meio ideal. Como está baseada no método experimental, até os mais recalcitrantes místicos tem que, no fim, concordar com os resultados, se seguirem preceitos lógicos. O estímulo ao ensino de ciência era a forma de estimular o pensar, erguer a humanidade a um novo patamar. Não poderiam ter sido mais nobres as intenções.

A idéia era enviar professores de grande prestígio a países sub-desenvolvidos. Esses professores lecionariam em universidades por um ano e voltariam para seus países de origem. Os seus salários seriam subsidiados por organismos internacionais, efetivamente transferindo riqueza intelectual para lugares que jamais teriam como contratar gente deste gabarito. Nada poderia sair errado. Era uma idéia perfeita.

Um deles, o Professor Richard Feynman, adorou a idéia. Ele ganharia posteriormente um premio Nobel em Física e estava em um ano sabático. Queria mudar de ares. Pensou em aprender Espanhol, mas viu uma moça bonitinha entrando em uma aula de Português... e entrou na sala. O Rio de Janeiro o seduzia. Não teve dificuldade em conseguir a transferência para uma universidade carioca. O ano era 1953.

Feynman, para quem não sabe, era um tipo especial. Como professor, sempre aparecia com novidades sobre como atacar um problema, remanejar matematicamente, virar tudo pelo avesso, sempre de alguma maneira que fizesse sentido. Era entusiasmado com a vida, apesar de ter sofrido bastante. Casou-se com sua paixão da adolescência, que morreu imediatamente depois. Mesmo assim era um tipo que enxergava tudo de maneira positiva, comunicava-se claramente e entusiasticamente e tinha uma força vital impressionante. Era muito querido por seus alunos, e formava-se naturalmente uma turma ao redor dele. Uma turma que compartilhava de seus anseios. Há um filme baseado na vida dele. Nunca assistam. É uma porcaria. Matthew Broderick é um ator de quinta categoria, e ele é quem faz o papel de Feynman. Em lugar do filme, leiam os seus livros. Um dos mais interessantes é "O senhor está brincando, Sr Feynman?". Quem gosta de Física pode se deliciar com suas "Lectures". É um gênio de primeira grandeza, e sempre se pode aprender com eles. Mas há uma coisa fenomenal em Surely you're joking. Algo que notei, mas nunca tinha pensado em profundidade até ver o fenômeno claramente descrito no livro.

Bom, como dizia, era 1953. Feynman fica encantado com o Rio. Surge então um problema misterioso quando começa a dar aulas. Há uma debandada geral de alunos. Eles vem mais tarde, em um pequeno comitê, para explicar que eles não fariam as lições pois eram muito simples e eles teriam que estudar para materias do curso (esta era fornecida como optativa). Então, Feynman, que não entendeu direito como as coisas funcionam no Brasil, tratou de passar tarefas mais difíceis. Nada deles fazerem.

Notou que só dois ou tres alunos assistiam ao curso e faziam o que era pedido. Quem quiser as notas de classe daquela época veja aqui. Notou também que nenhum destes tinha estudado anteriormente no Brasil. Eram estrangeiros ou filhos de estrangeiros. Intrigado, começou a estudar mais profundamente os métodos de ensino no Brasil. Notou que a maior parte dos outros, que pareciam bons alunos, eram na verdade papagaios que estudavam para atravessar as provas. Todo o sistema era construído para esses, que na verdade não aprendiam: decoravam. Ele verificou com cuidado o tipo de prova que era oferecido e por que não se detectava o problema. Notou também que ninguém tinha interesse em mudar nada. Os alunos estavam satisfeitos. Os professores também.

Frustrado, em seu discurso final, na formatura, explicou, em Português: "No Brasil não se ensina Ciência".

Todos ficaram assustados. O que ele estava fazendo? Explicou a reação dos alunos e dos outros professores, descreveu com cuidado os problemas que encontrou. Tudo o que conseguiu foi desencadear fúria dos acadêmicos, dos patrocinadores, dos jornais, de todo o mundo.

Feynman sentiu que tinha a responsabilidade de avisar, de contar a todos o que ele viu. Foi ignorado soberanamente. Esse lugar é de uma arrogância incrível... Este professor que até aprendeu Português, foi batucar na escola de samba e tentou com toda a sua força ajudar... só foi atacado. Eu, que teria adorado fazer um curso com ele, entendo bem o que ele quis dizer. 30 anos depois, nada mudou. 50 anos depois, não sei, mas apostaria que tudo continua igual, se não tiver piorado.

O grande erro é, como uma vez um amigo comentou, que não se deve ajudar a quem não pede ajuda. Isso é tão comum... você vê os erros, sabe resolver, mas quem erra não tem interesse em ser ajudado. A verdade é que a primeira etapa para a melhora é sempre o reconhecimento do erro, baixar a crista. A solução vem da vontade de resolver, e aí, nesse instante uma mãozinha vem a calhar. Eu acho que no caso desse país o reconhecimento está demorando muito mais do que devia.






2006-07-10

A Casa para Débeis Mentais



Uma vez li uma história curta de Isaac Asimov, chamada "Profissão". Ocorria em um futuro não muito longínquo, e me pareceu interessante pela forma em que Asimov promoveu uma interessante alegoria, misturando propriedade intelectual, geração de conhecimento e dependência tecnológica em um mundo onde as pessoas não precisavam ir à escola. Todo o aprendizado se resumia em duas sessões de alguns minutos de programação cerebral. A primeira sessão, aos 8 anos, era para alfabetização e conhecimentos matemáticos básicos e a segunda sessão, aos 18 anos era equivalente à nossa educação universitária. Em meia hora, o indivíduo era analisado, as suas capacidades mentais avaliadas e era programado com a carreira que mais se ajustava a seus circuitos mentais. Ele não tinha escolha.

Alguns poucos não podiam ser programados. Eram os "Débeis Mentais". Na verdade eram indivíduos razoavelmente inteligentes, mas que não aceitariam muita informação desta maneira instantânea. Dizia-se que o seu cérebro era incapaz de absorver desta maneira. Eram separados do convívio com as outras pessoas e eram internados em "Casas para débeis mentais". Pode-se imaginar o desespero de uma pessoa, em todos os aspectos normal e inteligente, de descobrir, repentinamente, que todos os seus sonhos de futuro tinham-se desvanecido naquela meia hora de análise, no momento que lhe disseram, sacudindo a cabeça: "Não é possível."

Estas pobres almas eram internadas em instituições onde, vejam só, eles tinham que aprender da maneira antiga... usando livros. Lendo, tentando entender. Fazendo esforço. De uma maneira terrívelmente lenta, nunca poderiam competir com os que tinham absorvido conhecimento instantaneamente, que sabiam operar complexos equipamentos como se tivessem nascido fazendo isso.

Uma versão em Inglês encontra-se aqui, existe tradução para o Português, mas não recordo o nome da coletânea. Nota-se como o problema da geração de conhecimento é delicado e como a posição do inovador é instável. Tem um final surpreendente. Vale a pena ler.



2006-07-08

O triunfo da morte



Extraído do blog do Reinaldo Azevedo (aqui).Ontem invadiram a casa da mãe do Reinaldo, em Santo André. Reviraram tudo, não roubaram nada. Certamente um recado da coligação PCC-PT! Temos que tirar essa corja do poder. Agora! Já é quase tarde demais.



Foge suposto assassino de Celso Daniel, aquele prefeito que lidera uma fila de oito cadáveres

Vocês certamente já leram nos vários sites e blogs que Rodolfo Rodrigo dos Santos Oliveira, o Bozinho, acusado de ser o assassino do prefeito Celso Daniel, fugiu da penitenciária de Franco da Rocha. Só para rememorar: ele disse ser o executor, mas voltou atrás e afirmou ter tomado uns tabefes da polícia e do deputado Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP) para confessar. Greenhalgh nega. Não devemos confiar em palavra de bandido.
Bozinho começa a recender a presunto. Querem apostar? Se bem se lembram, as “coincidências” já mataram sete pessoas nesse caso, incluindo o prefeito petista. Uma oitava, o legista que constatou a tortura que Greenhalgh diz não ter havido, também se foi. Acompanhem a narrativa macabra.
Uma das vítimas foi o garçom Antônio Palácio de Oliveira, que serviu o prefeito e Sérgio Sombra no restaurante Rubaiyat em 18 de janeiro de 2002, noite do seqüestro. Foi assassinado em fevereiro de 2003. Trazia consigo documentos falsos, com um novo nome. Membros da família disseram que ele havia recebido R$ 60 mil, de fonte desconhecida, em sua conta bancária. O garçom ganhava R$ 400 por mês. De acordo com seus colegas de trabalho, na noite do crime, ele teria ouvido uma conversa sobre a qual teria sido orientado a silenciar. Quando foi convocado a depor, disse à Polícia que tanto Celso quanto Sombra pareciam tranqüilos e que não tinha ouvido nada de estranho.
O garçom chegou a ser assunto de um telefonema gravado pela Polícia Federal entre Sombra e o então vereador de Santo André Klinger Luiz de Oliveira Souza (PT), oito dias depois de o corpo de Celso ter sido encontrado. “Você se lembra se o garçom que te serviu lá no dia do jantar é o que sempre te servia ou era um cara diferente?”, indagou Klinger. “Era o cara de costume”, respondeu Sombra.Vinte dias depois da morte de Oliveira, Paulo Henrique Brito, a única testemunha desse assassinato, foi morto no mesmo lugar com um tiro nas costas. Em dezembro de 2003, o agente funerário Iran Moraes Rédua foi assassinado com dois tiros quando estava trabalhando. Rédua foi a primeira pessoa que reconheceu o corpo de Daniel na estrada e chamou a polícia.
Dionízio Severo, detento apontado pelo Ministério Público como o elo entre Sérgio Sombra, acusado de ser o mandante do crime, e a quadrilha que matou o prefeito, foi assassinado na cadeia. Abriu a fila. Sua morte se deu três meses depois da de Daniel e dois dias depois de ter dito que teria informações sobre o episódio.
Ele havia sido resgatado do presídio dois dias antes do seqüestro. Foi recapturado. O homem que o abrigou no período em que a operação teria sido organizada, Sérgio Orelha, também foi assassinado. Outro preso, Airton Feitosa, disse que Severo lhe relatou ter conhecimento do esquema para matar Celso e que um “amigo” seria o responsável por atrair o prefeito para uma armadilha.
O investigador de polícia Otávio Mercier, que ligou para Severo na véspera do seqüestro, foi alvejado durante uma invasão à sua casa. O último cadáver foi o do legista Carlos Delmonte Printes, que teria tomado alguns remédios estranhos.Perdeu a conta? Então anote aí:
1) Celso Daniel: prefeito. Assassinado
2) Antonio Palacio de Oliveira: garçom. Assassinado
3) Paulo Henrique Brito: testemunha da morte do garçom. Assassinado
4) Iran Moraes Rédia: reconheceu o corpo de Daniel. Assassinado
5) Dionizio Severo: suposto elo entre quadrilha e Sombra. Assassinado
6) Sérgio Orelha: Amigo de Severo. Assassinado
7) Otávio Mercier: investigador que ligou para Severo. Assassinado
8) Carlos Delmonte Printes: Legista. Tomou alguns remédios...
Bozinho que fique serelepe...


2006-07-04

Os 3 votos de Lula - 1.O desafiador

Quem entende de marketing sabe que para uma campanha bem sucedida é necessário identificar o público alvo adequadamente. Darei minha humilde contribuição. Pelo menos tento explicar por que cargas d'água o Lula tem tantos eleitores assim.

Voto número Um: O desafiador

Estava no Rio para um congresso durante a manhã. Tinha que visitar uma empresa à tarde. Saio do hotel (acho que era o Othon) e peço ao porteiro um táxi.

Andar engravatado no Rio de Janeiro é um convite aberto aos bandidos, portanto eu estava extremamente cuidadoso, olhando para todos os lados. Ele parou um táxi qualquer e eu entrei. Quando estava sentado me dei conta: não tinha prestado atenção no motorista, tão preocupado estava com os pivetes que rondam na calçada. Levei um susto: o taxista parecia ter recém saído de um hospital psiquiátrico ou de um presídio. Agora eu estava à mercê deste, que poderia ser muito pior que qualquer pivete endemoniado. Decido continuar no táxi, afinal pedir para descer agora só poderia piorar as coisas.

Ele tinha a cabeça raspada, era baixinho, usava camiseta meio rasgada, tinha o braço todo tatuado e um aspecto invocado, meio musculoso. O mais impressionante era seu sorriso estranho. Parecia estar pensando: "Ôba, peguei um Doutor desta vez".

Olhou para mim do espelhinho, esperando eu dizer para onde queria ir. Eu ainda pensava se devia ficar no táxi, quando me pego dizendo "Zona norte, estrada velha da Pavuna". Já não havia jeito. O motorista continua me analisando, meio zombeteiro.

"Sabe, eu sou petista"

Disse, um tanto arrogante. Olhava sempre pelo espelhinho para avaliar a minha reação. Ia me manifestar quando ele me interrompe:

"Você é Tucano, claro, já se vê!" - e continua - "Mas não sou desses petistas frouxos aí, não. Sou xiita, radical, trotskista e se Deus quiser o Lula vai subir lá e vai iniciar a revolução que este país está precisando."

Não tinha remédio senão meio que concordar com o cara. Ele continua:

"Sei que vocês burgueses tem medo, mas vai ser bom para o Brasil, né?"

Parecia não estar tão certo, parecia querer a minha aprovação de alguma maneira. Eu não sabia o que dizer, mas achei que o melhor era ser honesto.

"Olha, acho que não é bem assim, eu até acho que o país precisa mudar muita coisa mas..."

Interrompe, subitamente retomando o ar arrogante.

"Já sei, já sei, é que vocês vão perder os privilégios, né? Vocês tão nadando de braçada com o Fernando Henrique, né? "

"Não é assim não... é que o Fernando Henrique possibilitou investimentos..."

"Sei, trouxe a grana das multis, né? Para explorar o povo brasileiro. Tô sabendo!"

Pensei que nada do que eu dissesse entraria no cérebro impermeável do taxista. Não havia remédio senão ouvir a sua ladainha.

"É, os gringos vão se ferrar mesmo. Sô xiita, tá sabendo? E se Deus quiser, a revolução vai acontecer e vai virar o Brasil de pernas pro ar."

Aos poucos, sua atitude comigo foi ficando mais mansa, menos confronto e mais conversa. Afinal, ele sabia que eu discordava dele mas ao mesmo tempo entendia que a situação dos pobres não estava nem próxima do que poderia ser considerado minimamente razoável.

Ele foi me contando mais e mais de sua vida. Em determinado momento ele disse:

"Sabe, a minha patroa? A dona Marta? Ela é professora, lá no morro, ta sabendo? Ela dá aula lá na escola pras criancinhas. No otro dia, a polícia invadiu a escola, atrás de um traficante. Teve tiro pra todo lado"

"E alguém se machucou?"

"Não, foi de noite. O morador da escola se escondeu embaixo da cama. Mas foi uma irresponsabilidade da Polícia: eles não podem subir no morro!"

"No dia seguinte, um aluno da dona Marta veio com um papelzinho do tráfico e entregou para ela. Era um papel rasgado, escrito à mão, onde dizia que se a Dona Marta quisesse, o tráfico ia apagar os policiais que deram tiro na escola."

Notei como ele se sentia importante e poderoso, estufava o peito... a mulher dele tinha tido, por um momento, o poder de vida e morte sobre os policiais que subiram no morro... Pergunto:

"E o que ela fez, a Marta?"

"Ela agradeceu e disse que não precisava não. Ela é muito decente, a patroa, a dona Marta."

Concordei.

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Clique aqui para o voto número Dois: "O covarde ressentido".




Os 3 votos de Lula - 2. O covarde ressentido



Voto número dois: O covarde ressentido

Estava em Brasília. O meu vôo sairia em duas horas e eu já estava no aeroporto. Penso que seria um bom momento para almoçar.

Dei uma volta no aeroporto. No último andar, uma praça de alimentação e tristes lojinhas de produtos artesanais brasileiros. "Sob os auspícios do Governo Federal", penso. Triste imagem do grande país que o Brasil deveria ter sido. Primitivos bonequinhos de barro dançando um "Bumba meu boi", doce artesanal de castanha... essas porcarias. Dezenas de lojas assim... É a cultura dos incultos. A defesa do não lucro e do mercado pífio. Tudo para ser engolido pelo aspirante ao monopólio dos empregos, a grande mãe, o Estado absoluto.

Para piorar, o último andar do aeroporto está aberto. As janelas estão abertas, tiras de vidro que não podem ser fechadas e dão de cara para a pista principal. Um barulho do inferno. Pequenos restaurantezinhos por quilo tem as suas tevês sintonizadas na Globo, em altíssimo volume, para garantir o entretenimento dos clientes. Uma horrível e barulhenta praça de alimentação no aeroporto da capital do país.

Decido descer para o restaurante melhorzinho. Um tanto caro, mas nada comparado com os preços da Austrália. É um buffet, self-service.

Self ma non troppo, diria eu. Os garçons trazem os talheres - pergunto-me porque já não estão na mesa - e oferecem as bebidas. Uma cerveja, porque não? Já não tinha nada para fazer nesse dia. O garçom me atende de má vontade, sempre olhando ao redor. O que estaria ele procurando?

Sirvo-me de um buffet bem brasileiro: mandioca frita, mandioquinha refogada com vagens, feijoada, arroz e feijão, arroz carreteiro. Bisteca de porco frita, couve, laranja. Virado de feijão. Frango e "nhóqui", adoro esta grafia.

Fui de feijoada, afinal, mistureba por mistureba esta é mais clássica. Noto que o garçom continua olhando ao redor. O restaurante estava vazio, só havia dois homens conversando em uma mesa distante. Alegremente discursavam, com um forte sotaque nordestino, sobre um lobby, mencionavam nomes e mais nomes. Que pena, penso, se eu estivesse por dentro e fosse um repórter, teria provavelmente feito meu dia. Infelizmente não tinha nem idéia de quem eram os personagens mencionados e desliguei totalmente da conversa.

O garçom, de má vontade, veio perguntar se eu queria outra cerveja. Não obrigado. Volta para seu posto, encostado na parede do restaurante.

Aí entrou um político. Bom, parecia político nordestino: terno branco, cabelo encaracolado, uns 60 anos de idade. Um sotaque tremendo. O garçom se transfigura: todo sorrisos e afagos, vai junto ao ilustre cliente. Interessante... Baixava a cabeça, chegava a humilhar-se. Ria do que o político dizia, fazia claque... bem deprimente. Assim que terminou, voltou, com um resquício de sorriso, ao seu posto. Olhou para mim, eu olhei para ele... o seu rosto tornara-se carrancudo novamente. Não desperdiçou nenhuma oportunidade para bajular o político. Todas as vezes transfigurava-se e voltava ao normal. O político estava adorando, parecia alimentar-se desse servilismo repugnante. Era claro que ele não gostava do político, antes tinha-lhe ódio, mas curvava-se a seu poder...

Quando o político saía, o garçom alcançou-o à porta. Pude ouvir "O senhor sabe, doutor, sobre aquele trabalho..." Claro! Ele estava esperando algo do poderoso político, por isso lambia-lhe as botas. Este deu uma desconversada, dizendo algo como "Vamos ver isso para a semana que vem talvez, eu falo com você." e selou o acordo com um tapinha nas costas.

Novamente voltou o garçom com um resquício de sorriso, um músculo do rosto que teimava em não voltar ao normal... olhou para mim. A conta, pedi.

Ele trouxe a conta, e junto um papelzinho com letras garrafais, em vermelho: "O sindicato dos garçons recomenda uma gorjeta de 10% do valor da refeição." Olhou-me feio. Paguei os 10%.



Clique aqui para o último da série: "O espírito de porco"

Os 3 votos de Lula - 3. O espírito de porco


Voto número três: O espírito de porco

De todos este foi o único que veio em minha casa.

Um tipo meio macambúzio, derrotado. A mulher dele, muito mais esperta e prática, leva a família nas costas. Ele, desempregado há muitos anos, é balofo e triste. A imagem da incompetência e falta de confiança em si mesmo. Nunca olha para ninguém nos olhos. Quando fala, parece que está falando consigo mesmo.

"Zappi, o Abelardo vai votar no Lula" - disse uma amiga, na festa.

Eu não conseguia acreditar. Não conhecia ninguém que votasse nele. O Abelardo tinha declarado seu voto ali, na frente de todo mundo? Não fazia sentido, mas confesso que fiquei incrívelmente curioso. O que levaria alguém a votar no sapo barbudo? Bom, até podia imaginar razões, mas não para quem tivesse estudado, não fosse um doutrinado enlouquecido à la USP...

Este cara era um enigma. Imediatamente, todas as atenções se voltaram para ele. Macambúzio, não queria responder. Parecia sentir-se muitíssimo incomodado com essa súbita popularidade. Não dava razões coerentes.

"Mas ele é analfabeto!" diziam-lhe

"Não vai ser ele que vai governar, tem um pessoal que vai fazer o serviço"

Devia estar se referindo ao Zé Dirceu e a cambada de ptrambiqueiros.

"Ninguém sabe o que esses caras vão fazer, tem mentalidade de funcionário público e querem estatizar tudo para meter a mão em um bolo maior. Lembra da privatização das teles? Antes conseguir um telefone era impossível e ligar para o exterior custava 5 dólares por minuto, agora..."

"Eu não ligo para o exterior."

Assim seguia a conversa. Fiquei com mais pena ainda do Abelardo. Estava cada vez mais encolhido, encolhido, até que explodiu inesperadamente.

"Vocês querem saber por que vou votar no Lula?" - disse, quase gritando.

"Não é por que ele vai melhorar o Brasil. É claro que não vai. O cara é um lixo, e o PT só sabe fazer baderna. Mas vou votar assim mesmo, e sabem por que?

O silêncio era estarrecedor. Abelardo tinha se descontrolado...

"Porque eu estou desempregado há anos. Nunca consegui um emprego em minha vida. Vocês tão todos aí, numa boa, e eu estou ferrado. E não tem jeito, vou contiuar ferrado. Não pensem que eu acho que o Lula vai gerar empregos não, é claro que não vai. A economia não vai melhorar com ele, pelo contrário. Mas voto nele. Voto porque quando ele fizer o que ele quer fazer ninguém mais vai ter emprego, vocês vão estar tão ferrados como eu estou agora e vão sentir na pele o que é a minha situação. Por isso voto no Lula."

A mulher do Abelardo não sabia onde se enfiar. Todos os demais olhavam para o lado, desconversavam... Nada adiantaria. Abelardo tinha um motivo mais do que lógico para votar no analfabeto: queria que o Brasil inteiro descesse até seu nível. Isso é o que eu chamo de um voto consciente...




Esses são os tres votos do Lula. O desafiador é também o 'formador de opinião'. Esqueçam aquela história besta de que a classe média educada é formadora de opinião... isso já era. A classe média mal existe. A divisão entre pobres e ricos no Brasil faz com que cada uma das 'castas' tenha seus próprios formadores de opinião... a classe média não conversa com favelados. O 'covarde ressentido' é a maioria absoluta, fará o que tiver que fazer para levar uma vantagem, mas um dos valores nítidos que percebe é o de se vingar dos patrões que o subjugam. Ele se sente continuamente humilhado pelos poderosos e o Lula, incentivando a divisão, incita este a votar 'contra' o patrão.

Tanto o 'desafiador' como o 'covarde ressentido' vivem à margem do Estado. Não se pode nem dizer hoje que o Brasil esteja presente em uma favela ou vila onde 'a polícia não entra'. Isso já é um estado paralelo. Quem garante a segurança lá? As máfias. O PCC almeja ser o principal desses estados paralelos. Para quem não sabe, organizações terroristas do tipo Hamas tem braços assistencialistas, cuja função é ganhar as almas dos miseráveis que vivem nesses estados paralelos. Assim, a segurança é por conta da máfia, e a creche também. O PCC já está fazendo isso. Responde pelo simpático apelido de "Pessoal". O "Pessoal" arranjou a creche. O "Pessoal" está cuidando da segurança na favela. Claro que nesses lugares existe a pena de morte, mas ninguém se importa. Como o 'desafiador' disse: o 'tráfico' perguntou pra dona Marta...

O 'espírito de porco' transcende as classes sociais. Ele existe e é abundante em todas elas. Simplesmente dá um sabor bem brasileiro à máxima: "Se não consigo subir, trato de derrubá-los." Este poderia ganhar um pouco se entendesse o simples fato de que derrubando os demais, todos descem.

Só há uma saída, portanto: ganhar os 'formadores de opinião' e entrar no estado paralelo. Só assim, só se o Brasil se converter em uma Nação, cujo poder é reconhecido e único e a justiça funciona e é uma só, somente assim será possível puxar eleitores pela orelha e fazê-los subir, todos juntos, rumo ao progresso.



2006-07-01

Passeio de sábado


Sábado de manhã em Melbourne. O vento é forte e a temperatura é de uns 9 graus. Ameaça chover, mas nunca fico com medo da chuva daqui. É quase sempre fininha e inconstante, mal molha. Decidimos que iremos até Portsea e depois andaremos até a abertura que chega à entrada da baía de Melbourne, para ver como é. Há um antigo forte e um museu. A Austrália sempre se sentiu isolada do mundo e a paranóia vigente no início do século 20 era de que invasões estrangeiras eram iminentes. Nunca ninguém nem tentou invadir exceto na segunda guerra, os japoneses, ao norte.

O caminho que percorremos, ao longo da baía, tem uns 100 quilômetros. Chegamos aqui, que é a entrada da baía. Note que o outro lado (Point Lonsdale) é bem próximo, mas só é accessível de carro fazendo a gigantesca volta de mais de 250 quilômetros, a menos que se pegue o ferry que vai de Sorrento a Queenscliff.

A costa aqui tem dois lados: o mar aberto e a baía. As ondas do mar aberto são por vezes imensas, e com o vento que soprava ontem, estavam verdadeiramente impressionantes. A boca da baía não é muito profunda, e as marés geram correntezas muito fortes ali. Nadar é proibido, pois é difícil saber aonde a corrente vai levar o pobre nadador.

Estou ficando acostumado com imensas praias desertas e rochedos vermelhos sendo golpeados pelas ondas azuis, a paisagem clássica do sul da Austrália. O tipo de pedra que existe aqui não é granítica, não suporta as ondas e vai cedendo e formando penhascos verticais instáveis, às vezes assustadores para quem está em cima.

Sempre gostei de mares agitados. O fato de nunca sabermos como a paisagem vai estar daqui a alguns segundos me fascina.

Caminhamos até a ponta, o forte. Um museu automático para os pouquíssimos visitantes: nos túneis escuros do forte as luzes se acendem disparadas por sensores de presença. Uma voz explica a situação no início do século... em 1888 um cabo telegráfico submarino que ligava Melbourne a Londres se rompeu. Um cabo tão longo, em 1888? Acho incrível. Era o único canal de comunicações da Austrália com o resto do mundo. Nesse momento os militares australianos entram em pânico: invasão iminente. Falta total de informações do mundo exterior... paranóia. Alarme falso, claro.

Os túneis atravessam a pedra, invisíveis de fora. Canhões escondidos eram levantados em caso de necessidade e posteriormente escondidos para que os inimigos que nunca chegaram não os pudessem ver e destruir. A paranóia sempre deve ter sido o motor que impulsiona a tecnologia militar. Um exemplo incrivelmente puro aqui.

Na caminhada da volta, na praia do lado do mar aberto, vejo uma interessante placa em uma pedra (clique na figura para ampliar). Ali diz:

IN MEMORY OF
HAROLD EDWARD HOLT, P.C., C.H.,
PRIME MINISTER OF AUSTRALIA FROM
26.1.1966 UNTIL 19.12.1967. HE DISAPPEARED WHILE
SIMMING OFF CHEVIOT BEACH DURING
ROUGH WEATHER ON 17.12.1966


Impressionante! O cara veio nadar aqui e sumiu? O Primeiro Ministro? Investigo um pouco e chego à conclusão que ele tinha 58 anos quando isso ocorreu. Estranho... Dou uma olhada na praia, interditada. Não só as ondas são imensas, mas há muitíssimas pedras irregulares no fundo, isso sem contar as correntezas causadas pela entrada da baía e os ventos, a água gelada, os tubarões...


Não entendo o que aconteceu aqui. O corpo nunca foi recuperado. Muitos australianos nadam durante toda a adolescência. O culto à natação é impressionante. Os salva-vidas são vistos como heróis locais. A popularidade deste homem talvez tenha começado assim... Mas parece realmente um lugar demasiado maluco para se nadar. Minha paranóia... será que...

De qualquer maneira, poderíamos aproveitar algo deste passeio. Talvez, quem sabe... convidar um certo presidente para tomar umas pingas e um delicioso banho de mar?