2008-03-01

Os roteiristas e o monstro

Os roteiristas americanos estiveram em greve. Isso deixa toda a indústria do entretenimento em polvorosa: os atores estão aí, mas não sabem o que dizer. É ainda pior do que isso, não sabem o que dizer nem o que expressar. No gigantesco teatro do showbiz os atores são títeres enquanto os roteiristas são os invisíveis seres que os manipulam.

Eu admiro os roteiristas. Não tanto pela infinidade de besteiras proferidas em alta velocidade pelos personagens de "Friends", série que abomino. Pensando melhor, talvez devesse admirá-los também por isso... imaginem quão difícil deve ser fazer essa gente chata de "Friends" ou "Seinfeld", "ER" ou "Will and Grace" dizer algo coerente, divertido ou inteligente. Imagino a vontade que muitos roteiristas tem de acabar de uma vez com a vida desses personagens chatíssimos.

Não, eu os admiro mais pelos ocasionais lampejos de genialidade, por caracterizações psicológicas mais complexas, como em "Nip & Tuck" ou "Monk", com seus lampejos de humor... Aquele é um "Monk", já dizemos, quando encontramos um louquinho como ele.

Nestas férias topei com um personagem impressionante. Trata-se de Dexter, o assassino serial que trabalha para a polícia de Miami.

Dexter tem um problema que o tortura continuamente. Ele tem que esconder de todos o que ele realmente é. Mas aí é que vem a parte interessante: o problema não é esconder que ele é um assassino serial. O problema é esconder o fato de que ele não sente qualquer emoção. É isso que faz dele um monstro.

O caso de Dexter não é trivial. Muitos já tentaram descrever monstros como Dexter, eu acredito que "O homem sem qualidades" de Robert Musil era um desses. Musil o descreve cuidadosamente; mais descrevendo os seus atos, reações a eventos externos e pensamentos do que caracterizando-o verdadeiramente. Isso porque "O homem sem qualidades" é incaracterizável, quase que por definição, assim como Dexter.

No caso da série americana, o perfil psicológico de "Dex" é muitíssimo astuto. Ele fala contínuamente consigo mesmo e só por esse motivo o entendemos, ainda que uma pessoa com sentimentos "normais" tenha incrível dificuldade de captar verdadeiramente as conseqüências da aberração que Dexter é.

"Sem emoções" é uma simplificação para fazer de Dexter um tipo mais palatável. O fato de que esse assassino só mata gente ruim pode fazê-lo simpático aos olhos dos mais simplórios. A série deixa entretanto claro que isso é um mero acidente, um resultado de cuidadoso condicionamento de Dexter pelo seu pai adotivo, o único que sabia o "grande segredo". Dexter na verdade sente, mas os seus sentimentos não se manifestam diretamente no seu pensamento. Por exemplo, para perceber que está aterrorizado, Dexter põe a mão no coração que bate fortemente. O sorriso com que Dexter nos brinda a seguir é definitivamente impagável.

Somos o que sentimos. Por esse motivo Dexter simplesmente não é. Ele mesmo, em um lampejo incrível de lucidez, se descreve como uma coleção de respostas aprendidas e comportamentos fingidos. O vazio interior desse ser estranho é quase impossível de imaginar.

Há muito conhecimento de psicologia por trás dessa personagem macabra. Eu não tenho dúvidas de que quem quer que o tenha criado conheceu, como Musil, um monstro desconexo que lhe assombrou a existência.

4 comentários:

Orlando Tambosi disse...

Eita, Zappi,

estás virando um escritor...

Zappi disse...

Obrigado, Tambosi... mas não é para exagerar. É só um textinho!

Paulo Henrique disse...

Concordo com você na crítica ao Reinaldo Azevedo e à ira dos carolas de plantão. Só divergimos numa coisinha: eu adoro Friends! Seinfeld, etc. :)
Sou um alienado pela indústria cultural :)))
abs

Zappi disse...

PH:

E o que você acha de Dexter?