2006-08-13

A ciganinha



Sempre foi claro para mim que o que ganhamos em uma viagem depende muitíssimo de com quem estamos ou quem encontramos no nosso caminho. As viagens solitárias tem um sabor de "busca de si próprio", por assim dizer. Nestas, e diria especialmente nestas, o impacto do contato humano fica amplificado. Encontrar alguém de quem gostamos ou com quem nos identificamos é uma experiência incrível.

O mistério é aumentado quando não podemos nos comunicar completamente: tudo fica difícil sem uma língua comum. Mas não é aí que os olhares e os movimentos passam a ser ainda mais importantes? Não é nesses momentos que o que fazemos e o que tocamos supera tudo o que poderia ter sido dito?

Era inverno em Budapest. Nessa tarde decidíamos a qual concerto iríamos de noite. Havia um que parecia interessante, de um talentoso pianista húngaro. Eva não queria ir nesse... "Por que você quer assistir? Ele é chato. Toca exatamente igual ao disco. Você tem o disco, não tem? Não vamos neste não..."

Eva era bonitinha e tinha nos olhos sempre faiscas de excitação. Nos comunicávamos em alemão, que ela falava impecavelmente com um sotaquezinho meio austríaco, meio húngaro, com os erres pronunciados na frente e não na garganta. Sempre gosto quando as moças falam alemão desse jeito...rrrr rrrr.... Uma pianista loirinha, inquieta, decidida. Ela sempre parecia saber o que queria.

"O que você sugere então?" pergunto, já imaginando que Eva tinha algo em mente. Ela ficou pensativa por um momento. Não sei se estava tentando fazer suspense... então deu um gritinho e disse: "Tenho uma idéia, não sei se vai dar certo, vou dar um telefonema." e saiu correndo.

Quando voltou, veio com o ar satisfeito de quem tinha conseguido algo fantástico. "Feito" disse Eva. "Uma amiga concordou em tocar para a gente. Em troca, pediu que a levássemos para jantar no Café Arlequino. Acho que deveríamos pagar para ela." Mais do que justo, pensei. Se ela era tão boa assim, melhor que o famoso pianista húngaro, merecia pelo menos que pagássemos o jantar. Pergunto como é o nome dela. "Laura" e acrescenta baixinho, com um ar marôto: "Ela é cigana..."

Na Hungria comunista os ciganos tinham que ser integrados a todo custo. A maior parte deles era nômade, acampando aqui e ali, e sobrevivendo de roubo e trambiques. O governo central não podia permitir que os 'companheiros ciganos' não se integrassem à sociedade, e aplicaram um sistema de discriminação positiva: os ciganos recebiam bolsas de estudo, moravam nos melhores lugares. Recebiam vantagens, que de bom grado aceitavam. Na média, os ciganos não mudavam sua natureza, de profundas raízes socio-culturais. Confrontados com um presente como esse, vindo do governo, porque iriam recusar?

Fiquei sabendo que Laura tinha origem cigana, mas já era 'civilizada' ha várias gerações. Entretanto, a sua família aproveitava as vantagens de ter ancestrais ciganos: moravam em um apartamento no centro, uma vantagem da discriminação positiva. De outra maneira teriam que comprar uma casa em um bairro ou viver em conjuntos habitacionais feios, tristes e afastados da cidade.

Tomamos um bonde e fomos até lá. Chegamos a um prédio escuro, grande, com um pátio interno e sem elevador. A única entrada estava quase bloqueada por imensas latas de lixo cheias. "É aqui?" perguntei intrigado, já sentindo falta da magnífica sala de concertos que tinha trocado por esta incerta aventura. Ante a resposta positiva, manifestei a minha incredulidade: "Tem certeza?" O lugar era um antro. Ouviam-se gritos, choros de crianças, tudo ecoando nos corredores e no pátio. Subimos uma escada escura, da qual eu teria despencado facilmente se não fosse o corrimão a me ajudar a cada momento. Era pior que os cortiços de filmes da Europa Oriental. Perguntei onde estaria o "privilégio" de morar em um lugar como esse. "É perto do centro" disse Eva, preocupada com onde punha os pés na escuridão da escada.

Chegamos à porta do apartamento de Laura. À medida que nos aproximávamos na escuridão, a porta foi se abrindo e iluminando o chão pela fresta com a luz que vinha de dentro.

"Percebi que vocês estavam chegando e abri a porta" disse alegremente em húngaro uma moça baixinha, com cabelos muito negros, lisos e compridos. A Eva nos apresenta: essa era a Laura. Com um sorriso, aperta minha mão. Após uma rápida verificação, chegamos à conclusão que não falávamos nenhuma língua em comum. Como o meu húngaro não funcionaria mesmo, conformei-me. Tínhamos ido para ouvir música, afinal.

O primeiro choque veio quando entrei no apartamento. Iluminado, imenso, com belos candelabros de cristal, era um verdadeiro palacete. O contraste com o que vi do lado de fora era brutal: tapetes persas forravam as paredes e o piso, um gigantesco piano negro no meio da sala dominava os olhares de todos. Sim, era um Steinway alemão. Como tinham dinheiro para adornar a casa inteira dessa maneira exuberante, em um país comunista? Aparentemente o pai da Laura era um violinista na Suíça, e o dinheiro estrangeiro (valuta) tinha um poder de compra impressionante em países onde a moeda oficial não era mais que dinheiro de mentirinha, como o do Banco Imobiliário. Laura era riquíssima.

Após uma conversinha, a Laura pede para que sentemos ao redor do piano e anuncia o "Programa": Partita n.1 de Bach e 'Gaspard de la nuit' de Ravel. As mãos dela eram um tanto pequeninas. Será que ela daria conta do recado? Eva diz baixinho, em alemão, que a Laura tinha recebido da academia de música de Budapest a maior honraria que eles concedem a músicos: todos que lá estudam saem com o diploma de músico, mas ela era "Müvész" ou "Artista". Pouquíssimos conseguiam tal feito. Não tinha tanto a ver com a perfeição técnica como com a originalidade e emoção da interpretação.

Mas boa técnica ela tinha. O prelúdio da Partita serviu como um aquecimento, onde Bach e ela brincavam com as notas e com a atenção do público, que esperava para ver qual seria o desenvolvimento final. Eu estava cansado de conhecer as partitas e em especial esta, mas a interpretação dela era muito diferente do que eu estava acostumado. Feminina, eu diria, com uma precisão no toque e uma nitidez nas vozes como é realmente difícil conseguir. Rodeado de tapetes persas, badulaques e lustres, o ambiente era muito instigante e a acústica era estranhamente teatral. Laura continuava trabalhando na sua interpretação e a sarabanda talvez poderia ter sido mais doce, mas o forte dela era mesmo nos movimentos rápidos e rítmicos. A giga me deixou tonto, tão fortemente expressiva, nítida e decidida.

Laura sabia o que causava quando tocava. Entre tudo o que senti, senti também inveja. Ela fazia o que queria no teclado; quando eu tocava, poderia me dar por satisfeito se acertasse as notas. Por sorte a apreciação da sua arte superava em muito a inveja. Olhava de vez em quando com o canto do olho para se certificar, mas ela sabia muito bem o poder que tinha.

Fez uma curta pausa e começou o Ravel. Esperta como era, deixou o melhor para o final: jamais ouvi uma interpretação como aquela, nem mesmo em gravações de grandes gênios. Fiquei completamente embasbacado. Eu não esperava mesmo algo tão perfeitamente sublime.

Quando terminou, apesar de não estarmos em um teatro, aplaudimos freneticamente. Aplaudimos não tanto para aplaudir como para evitar o silêncio embaraçoso que ficaria quando Laura terminasse, parasse de inundar nossas almas com aquilo que era para mim o que existia de mais valioso: música de verdade, tocada só para nós, por uma Artista. Merecíamos tanto?

Ficou sentada lá por um momento, um pouco de lado, sorrindo. A sua imagem ficou para sempre gravada em minha mente.

Fomos ao Arlequino, que era um lindo café com fantásticos doces húngaros, pedi uma Gundel Palacsinta e durante todo o tempo Laura ficou brincando com as amigas. Ela escolheu um lugar especial, de onde pudesse encarar o pianista, que aparentemente a conhecia. Aparentemente? O pobre rapaz começou a suar terrívelmente quando a viu. Laura estava adorando tudo isso.

"Agora ele vai tocar tal e tal música, e vai fazer uma cara engraçada em uma passagem, querem ver?" dizia Laura... e batata. Acontecia exatamente igual ao que ela previa. Uma vez, outra e outra mais. Fiquei com uma pena incrível desse pianista que parecia ficar mais e mais perturbado à medida que as gargalhadas de Laura chegavam-lhe aos ouvidos. Qual era a razão dessa tortura? Amor não correspondido? Uma natureza cigana parecia estar se manifestando. A previsão do comportamento do coitado que não podia fugir a seu destino, não podia se esconder, tinha que continuar tocando, encarando de frente a sua desgraça, a sua insignificância. Era tenebroso o fato de que ele tentava agradar, mas parecia saber que era impossível, que Laura era infinitamente melhor que ele.

Quando fomos embora, Laura estava satisfeitíssima. Deixamos o derrotado pianista pelo qual eu não pude evitar sentir uma pena tremenda. Andamos com ela de volta para o prédio escuro em que morava. De volta ao apartamento, pela primeira vez, Laura me dirige o olhar diretamente, sorri e diz: "Nice to meet you".

Vi então instantaneamente a realidade. A mágica que eu havia presenciado tinha uma lógica, um motivo: o pai músico, a irmã violinista. Ela, pianista. Longas e intermináveis tardes de estudo, esforço e dedicação. O que eu vi e ouvi não acontece de uma hora para a outra, por acaso. Algum poder impressionante tem que estar por trás, impulsionando tudo aquilo, essa inacreditável busca pela perfeição expressiva.

O que seria o que a impulsionava? Quando nos despedimos ela estava quase doce, como um plácido regato. Eu sabia no entanto que por trás daqueles olhos havia um fogo escondido que lutava sempre para sair do controle que a sua dona lhe impunha. Era uma luta eterna. Quem terá vencido no final, a moça ou o fogo?


5 comentários:

Anônimo disse...

Adorei o seu texto. Cynthia.

Anônimo disse...

Muito obrigado!

Volte sempre,

Zappi

Orlando Tambosi disse...

Belas cenas, literárias. No começo, me pareceu um apelo ao "politicamente correto". Mas não foi assim (felizmente?). É o quotidiano de que só a literatura pode tratar. No mundo das ciências, a frieza do mundo imposto (vade retro, existencialismo!) desvia o olhar de interiorizãções como esta (compreenssível na interiorizada cultura européia).
Sobra um gesto.

Belo texto.

Abs.

Anônimo disse...

Caro Tambosi,

Obrigado!

Não gosto nada dessa história de 'Politicamente Correto'. Parece-me que debaixo desse guarda-chuva esconde-se o que há de mais nefasto e horrível da natureza humana. Chega-se a defender absurdos com uma facilidade incrível dizendo: "Tal atitude faz parte da cultura deles..." Ainda vou escrever um post tratando sobre isso, mas aí vai um exemplo:

"Faz parte da cultura do Lula e de seus seguidores não estudar e não aprender, assim como tirar proveito próprio de todas as situações. A preguiça não é encarada pela sua cultura como algo a combater e sim como um estado natural do ser. A mentira portanto não pode ser condenada pois está melhor alinhada com os fundamentos culturais vigentes nessa comunidade, assim como outros atos mal vistos por outras culturas, como corromper e ser corrompido. A convivência pacífica das várias comunidades no território brasileiro tem que incentivar a compreensão dessas e outras diferenças culturais, não censurando, mas aceitando esses atos e combatendo a repugnância que eles podem causar inicialmente. Lembramos sempre que tudo o que gerar conflito entre culturas pode ser visto como discriminação injusta e é passível de punição de acordo com a Constituição Federal."

Viu? Fui políticamente correto agora.

Um abraço,
Zappi

Anônimo disse...

Certo, Zappi,

um abraço.