Parte 2
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Parte 5
Parte 6
Parte 7
Desde muito cedo Cesar sabia que era diferente. De todos, seus colegas de escola, seus pais, parentes, conhecidos, vizinhos... ninguém era como ele.
O motivo não era visível, não tinha nenhum defeito físico... Algo estranho acontecia de vez em quando... que fazia toda a diferença.
Na primeira vez ele estava distraído em seu quarto, descontraído. Era de tarde, tudo estava calmo. Não pensava em nada em especial. Sem aviso, tudo, absolutamente tudo ao seu redor mudou totalmente. Cesar sabia muito bem que isso não podia acontecer e observava as suas próprias sensações, inicialmente como se fosse algum tipo de entretenimento, ou talvez alucinação.
O que realmente acontecia do seu ponto de vista era extremamente difícil de explicar, porque sensações não se explicam. O resultado podia ser descrito, mas quase sem transmitir o verdadeiro impacto da experiência em si. Para começar, o tempo parecia correr mais devagar. A seguir a noção de espaço era distorcida: o mundo inteiro parecia estar dentro, e não fora de sua cabeça. Os sons do exterior passavam a vir de dentro, e os sons mais distantes e débeis passavam a ser os mais fortes e intensos, reverberando até, como se ecoassem em uma gigantesca catedral gótica. Era um tipo de 'inversão' - pelo menos esta palavra era a que melhor parecia descrever a situação. Não era um sonho: Cesar estava completamente acordado. Nem estava zonzo. Não havia bebido ou usado qualquer tipo de droga. Não: simplesmente e nítidamente tudo parecia invertido, dessa forma peculiar. E era tremendamente natural. Afinal, nossa cabeça é a verdadeira fonte de nossas impressões, não é mesmo? Por que o mundo haveria de aparecer externo como acontece do ponto de vista de todas as outras pessoas?
Cesar estava longe de ter certeza de ser o único a ser capaz de sentir o mundo dessa maneira estranha. Nessa época ele tinha uns quinze anos e decidiu começar a perguntar na escola, para tentar encontrar alguém que pudesse ter tido a mesma experiência exótica.
O resultado foi o previsível: não só ninguém entendeu o que Cesar quis dizer, como alguns o olharam como se ele fosse algum tipo de louco.
"É possível que eu seja louco, mas me sinto muito bem e lúcido" - pensou. Entretanto a partir daí tomou o cuidado de não mais tentar explicar para outros o que estava acontecendo. Guardou para si mesmo este assunto, pelo menos até que ele próprio entendesse melhor o fenômeno.
A situação ocorria às vezes, ao acaso, mas Cesar parecia ter algum controle. Inicialmente havia aquela sensação de se destacar dos eventos, os sons ambientes se alteravam... O incrível era como os sons mais distantes ficavam mais fortes, enquanto os mais próximos, mesmo que muito mais intensos, enfraqueciam. Fazia sentido, pois os sons distantes viajavam mais dentro dele... e ecoavam. O mais interessante da sensação era a extrema naturalidade... obviamente essa forma de perceber era mais próxima da realidade... a verdadeira essência de tudo. Todos os outros tinham que estar enganados. O universo ficava mesmo dentro de sua cabeça.
Cesar conseguia se manter dessa maneira cada vez mais tempo. Parecia-lhe cada vez mais natural. À medida que persistia nesse estado, outros detalhes começavam a chamar-lhe a atenção. Mais e mais sons distantes, que seriam quase imperceptíveis normalmente, começavam a ecoar em sua cabeça. O efeito era brutal: conseguia ouvir o bater de um martelo a quilômetros... as asas dos pássaros... Vozes próximas, entretanto, quase desapareciam. Detalhes de sons eram mais importantes que os sons em si. Pequenas inflexões de voz tornavam-se gigantescas ondas de emoção que o atingiam em cheio, de diversas maneiras simultaneamente. Quantas coisas caberiam realmente nesse imenso espaço que era sua cabeça?
Sair do estado 'invertido' e voltar ao normal não era difícil, bastava sacudir a cabeça, esfregar os olhos... e pronto. Voltar ao estado 'invertido' entretanto, não era tão fácil. Acontecia meio que ao acaso.
Cesar permanecia mais e mais tempo no estado 'invertido'. Um dia, fez uma descoberta: era possível ir para o estado 'invertido' sempre que desejasse! E era bem simples, mas difícil de descrever, era como cruzar uma porta. Ele sabia o endereço da porta, era facílimo! Tinha que ser: Cesar estava cada vez mais convencido que o estado 'invertido' representava na verdade a verdadeira essência de tudo. Passou mentalmente a chamar o estado 'normal' de 'invertido'... Tinha mais sentido assim.
Ia fazendo novas descobertas: percebia que o que ele via pelos olhos eram simples imagens planas do mundo. Ir de um lugar para o outro, por exemplo, requeria incontáveis raciocínios e cálculos, que Cesar tinha que fazer explicitamente... era divertidíssimo. Quem o visse acharia talvez que ele estava tonto ou próximo a desmaiar. Ele sabia no entanto que o esforço que ele fazia era uma prova de sua lucidez. Alguém já parou para pensar quantos músculos temos que contrair e relaxar para dar um ou dois passos? Agora ele precisava encontrar a forma de contraí-los e lembrar de soltá-los, cada pequeno músculo do pé... Não podia esquecer de nenhum. Ao mesmo tempo nunca antes tinha tido tanta consciência, tanto controle. Percebeu que outros animais também sofriam de percepção incorreta dos seus ambientes: é necessário só olhar para um peixe, por exemplo, para notar que ele vai para onde ele quer sem esforço, fazendo automáticamente muitíssimos movimentos coordenados para chegar lá, quase sem perceber. Um pássaro, então? Mergulhando velozmente no vazio, para desviar no último segundo sem se preocupar com detalhes, focalizando toda sua atenção em um inseto voando ou numa minhoca na grama. Agora Cesar sentia tudo. Mover a perna era uma aventura arriscada... e algo tão divertido...
Interagir com o que ele via, aquelas fotos que se mexiam e que apareciam como em túneis, vistas através de longuíssimos binóculos negros, era tão tremendamente complicado... Era simplesmente mais fácil ignorar essas imagens que se formavam e se moviam e continuar prestando atenção nas outras coisas tantas outras coisas sons sensações...
Aos poucos foi ficando mais difícil retornar ao estado das outras pessoas, não que isso tivesse muita importância para Cesar nesse momento. Mas tinha conseqüências algo bizarras. Em sua casa, já diziam: "Há algo errado com o Cesar, ele está estranho." Cesar entretanto ficava entusiasmado com cada nova descoberta. E suas descobertas iam mais e mais para o lado das sensações. Tentava classificar os milhares de coisas novas que sentia, mas em vão. Ele teria cada vez menos para dizer, isso se ele tivesse mesmo alguém em quem ele confiasse totalmente para dizer algo.
Uma manhã, Cesar levou um susto tremendo: acordou ouvindo vozes altíssimas, muitas vozes simultâneas, agudas, graves, não entendia nada do que diziam. Abriu os olhos e viu duas fotos de seu quarto... claro, ele teria que voltar ao estado das outras pessoas para poder se comunicar, interagir. Estava ouvindo vozes distantes, que ecoavam na sua cabeça, desta vez muitas, mais fortes, uma sensação inacreditável de desamparo, abandono. Não tinha como entender tudo aquilo... quem estaria falando? Onde estavam? O que diziam? Eram vozes realmente ou pensamentos soltos no ar? Tentou 'voltar' e não conseguiu, não podia se mexer, sacudir a cabeça, nada... tinha perdido o 'caminho' de volta... Reuniu o que podia de forças e empenhou-se em voltar. Após um tempo indeterminado, finalmente conseguiu. Seu coração estava acelerado, suava frio, estava realmente apavorado. Ao longo do dia, ele percebeu o pior: não tinha mais controle, as imagens se embaralhavam, os sons também, faltava um ponto de referência. Claro, ele já sabia como o mundo era realmente, essa consciência não lhe fugiria facilmente. Cesar sabia que tinha que fazer alguma coisa rapidamente, ou passaria definitivamente para o lado de lá, o que quer que isso significasse.
Com medo de falar com qualquer pessoa, decidiu estudar por conta própria em livros sua situação. Procurou em vão uma descrição similar de alguma condição parecida com a sua. Talvez os autistas ou catatônicos? Havia alguém no mundo que poderia dizer o que eles realmente sentiam e pensavam? Ou que pelo menos se importasse com isso? Estaria ele a um passo de alguma situação irreversível como essas? Estava convencido que sim, apesar de que não tinha a menor idéia de como seria, no que ele estava realmente se transformando. Depois de muito pensar, ele entendeu o que devia fazer: deveria se concentrar fortemente em alguma atividade complexa, que o forçasse a automatizar tarefas em sua mente. Aprender a tocar piano ajudava os deficientes mentais. Talvez ele pudesse se aproveitar do mesmo mecanismo... e ele gostava de música, o que provavelmente ajudaria.
À medida que estudava música, Cesar foi se sentindo mais e mais estável. Ele sabia que o que o ajudava era deixar suas mãos se moverem sozinhas enquanto ele focava em outro objetivo, obter um som cristalino e perfeito, usar as notas para dizer ao mundo o que sentia. Da mesma maneira que um pássaro pegando um inseto no ar. Às vezes, como navalhas as notas saíam, afiadas, cortando o ar e por vezes invocando em outros sensações aparentadas com as de Cesar. Mergulhou então nessa nova linguagem com uma avidez impressionante. Ele sabia que essa era a única chance que teria de continuar uma existência normal... Talvez até de transmitir a outros o que sentia.
Depois de alguns anos, Cesar estava totalmente 'curado'. Continuou dedicando tempo à música, mas continuava plenamente consciente de ser diferente. Ele mantinha clara a lembrança das sensações que sentia quando estava do outro lado. Entretanto já era completamente incapaz de encontrar a passagem.
Às vezes, quando estava sozinho no chuveiro, fechava os olhos e pegava a cabeça com as duas mãos. Sentia o que todos sentem, que estava segurando uma caixa preta. Mas ele sabia, só ele sabia que isso era uma ilusão inverossímil, que a verdade era aquele buraco gigantesco, aquela monstruosa catedral.