Ontem fomos a um concerto. Em Melbourne, na Hammer Hall. Entramos na sala, high tech, com refletores circulares de som de acrílico com altura ajustável pendurados no teto... um lugar fantástico, digno de um filme de ficção científica. O gigantesco órgão estava iluminado em tons de verde, e as arquibancadas em três níveis estavam lotadas. Todo o imenso teatro aparecia em miniatura nas dezenas de refletores de som no teto, miniaturas invertidas. Era como se houvesse que mostrar a todos o ambiente gigantesco, que cada um não podia ver individualmente.
Até aí, tudo bem. Já fui literalmente a centenas de teatros fantásticos. Lembro de um em Viena...
Fomos ver o violinista Nigel Kennedy. Eu tinha comprado um CD seu com o concerto em mi maior de Bach... meu favorito. Achei uma das interpretações mais maravilhosas que ouvi na vida. O concerto de ontem ia ser Vivaldi. Quatro "Concerti Grossi" e "Le Quattro Stagioni" após o intervalo. Bastante convencional. Poderia até ter sido chato. Entretanto o regente era Nigel.
Primeiro a orquestra entrou. A iluminação do palco estava perfeita, a tradição de teatro inglês não deixaria uma sala como essa com luzes de segunda categoria. Já tinha assistido a essa orquestra antes e fiquei impressionado com a qualidade dos músicos. Ontem estavam em uma formação em "camerata" de cordas.
Aí entrou Nigel. Com o violino e o arco em uma mão, pesadas botas pretas de punk, um casaco cuidadosamente rasgado, a cabeça meio raspada e o pouco de cabelo que restava penteado para cima com gel. Era completamente diferente da foto que eu tinha visto no CD. O cara parecia alguém recém saído de um manicômio.
O violino favorito dele parece ser um "Guarnieri del Gesú" de Cremona 1725. Deve valer alguns milhões de dólares. Isto é, valeria, se pudesse ser substituído. Seria esse o violino que esse punk tinha na mão? No mesmo segundo, entretanto percebi que a mão com o violino se movia diferente do resto de Nigel. Ele entrou com passos largos, debochados, batendo os pés no chão ruidosamente e se sacudindo todo. Aquela mão, no entanto, tinha o toque miraculoso de um grande violinista e segurava o instrumento com uma delicadeza infinita, um amor incomparável. Isso ele não podia jamais esconder ou evitar.
Entrou, fez uma série de piadas sobre os nomes das composições, que na verdade não eram nomes, senão números: RV356, por exemplo. Dizia algo como "O nome desta peça nos remete à antiga Veneza e transmite a emoção de Vivaldi quando..." e invenções e baboseiras nesse estilo, fazendo a platéia morrer de rir. Também pediu desculpas, alegando uma ressaca de VB (Victoria Bitter, uma cerveja meio vagabunda), e agradeceu o público por permitir que ele tocasse nestas condições.
Confesso que com este início, eu não esperava muito. Entretanto, começaram o RV356, que por coincidência é o meu concerto favorito de Vivaldi, em um andamento mais para "Presto con Fuoco". Nunca tinha ouvido assim. Os violinos voavam furiosos e uma ligeira fumaça saía das cordas. Quem conhece sabe que não é fumaça, apenas resina em pó que a vibração das cordas tira da crina do arco, mas que parece fumaça, isso parece. A orquestra seguia o louco admiravelmente, e este usava as botonas para marcar o tempo furioso. Perfeito! Na época de Vivaldi alguns regentes usavam um bastão contra o chão e o efeito devia ser similar.
No primeiro concerto a cadenza maravilhosa, obviamente composta por Nigel, fez a primeira violinista, uma Maori da Nova Zelândia, ficar enternecida. Como deve ser sofrida a vida desses artistas, um superando o outro na capacidade de emocionar, e tendo que manter o controle, o absurdo controle motor que os músicos tem. Os olhos dele tinham uma tristeza profunda nesse momento, estavam pequeninos, testemunhas de algum sofrimento terrível, como só a música pode reproduzir.
O concerto foi transcorrendo fantástico, com mais e mais piadas durante o intervalo. Em um determinado momento, a corda do violino de Nigel quebrou. Em segundos, Nigel alegremente troca de violino com a primeira violinista, que por sua vez troca com o violinista que estava atrás dela que troca com quem estava atrás dele e assim foi indo até a última violinista, que cuidadosamente tirou a corda quebrada. Nigel começa a tocar no violino desconhecido para ele, e após alguns compassos, diz alto e claro "Very nice violin!", ao que a plateia teve que conter o riso novamente.
No intervalo, houve uma pequena confusão para saber quem estava com o violino de quem, mais risadas, e Nigel procede à troca da corda quebrada, em frente a todo mundo. Como é um processo meio lento, começa contando que todas as vezes que toca na Austrália a corda quebra. Enquanto trocava e afinava fez piadas sobre violistas e maestros. Os violistas são para os violinistas como os portugueses são para os brasileiros, se é que isso dá uma idéia do tipo de piada.
Fez muitíssimas macacadas mais, entre elas deu um "selinho" em uma moça da platéia. O namorado dela ficou meio mal... Mas o que achei mais fantástico foi o comentário sobre a força da música ao vivo.
"As gravações são uma coisa ótima, mas nada se compara a pessoas tocando para outras pessoas"
Tanto mais impactante se pensarmos que Nigel era o aluno favorito de Yehudi Menuhin, se pensarmos nos anos e anos que Nigel e os outros músicos da orquestra demoraram em melhorar, por puro amor à arte, em todos os fantásticos seres que eles encontraram, todos tendo dentro de si aquela urgência maravilhosa de querer mais e melhor. Todos os que lá estavam eram artistas, como os húngaros dizem "Müvész". Porque entre um "Müvész" e um instrumentista existe uma distância infinita. E o fato deles terem tocado para nós, este sim é o supremo ato de carinho e de amor.
Até aí, tudo bem. Já fui literalmente a centenas de teatros fantásticos. Lembro de um em Viena...
Fomos ver o violinista Nigel Kennedy. Eu tinha comprado um CD seu com o concerto em mi maior de Bach... meu favorito. Achei uma das interpretações mais maravilhosas que ouvi na vida. O concerto de ontem ia ser Vivaldi. Quatro "Concerti Grossi" e "Le Quattro Stagioni" após o intervalo. Bastante convencional. Poderia até ter sido chato. Entretanto o regente era Nigel.
Primeiro a orquestra entrou. A iluminação do palco estava perfeita, a tradição de teatro inglês não deixaria uma sala como essa com luzes de segunda categoria. Já tinha assistido a essa orquestra antes e fiquei impressionado com a qualidade dos músicos. Ontem estavam em uma formação em "camerata" de cordas.
Aí entrou Nigel. Com o violino e o arco em uma mão, pesadas botas pretas de punk, um casaco cuidadosamente rasgado, a cabeça meio raspada e o pouco de cabelo que restava penteado para cima com gel. Era completamente diferente da foto que eu tinha visto no CD. O cara parecia alguém recém saído de um manicômio.
O violino favorito dele parece ser um "Guarnieri del Gesú" de Cremona 1725. Deve valer alguns milhões de dólares. Isto é, valeria, se pudesse ser substituído. Seria esse o violino que esse punk tinha na mão? No mesmo segundo, entretanto percebi que a mão com o violino se movia diferente do resto de Nigel. Ele entrou com passos largos, debochados, batendo os pés no chão ruidosamente e se sacudindo todo. Aquela mão, no entanto, tinha o toque miraculoso de um grande violinista e segurava o instrumento com uma delicadeza infinita, um amor incomparável. Isso ele não podia jamais esconder ou evitar.
Entrou, fez uma série de piadas sobre os nomes das composições, que na verdade não eram nomes, senão números: RV356, por exemplo. Dizia algo como "O nome desta peça nos remete à antiga Veneza e transmite a emoção de Vivaldi quando..." e invenções e baboseiras nesse estilo, fazendo a platéia morrer de rir. Também pediu desculpas, alegando uma ressaca de VB (Victoria Bitter, uma cerveja meio vagabunda), e agradeceu o público por permitir que ele tocasse nestas condições.
Confesso que com este início, eu não esperava muito. Entretanto, começaram o RV356, que por coincidência é o meu concerto favorito de Vivaldi, em um andamento mais para "Presto con Fuoco". Nunca tinha ouvido assim. Os violinos voavam furiosos e uma ligeira fumaça saía das cordas. Quem conhece sabe que não é fumaça, apenas resina em pó que a vibração das cordas tira da crina do arco, mas que parece fumaça, isso parece. A orquestra seguia o louco admiravelmente, e este usava as botonas para marcar o tempo furioso. Perfeito! Na época de Vivaldi alguns regentes usavam um bastão contra o chão e o efeito devia ser similar.
No primeiro concerto a cadenza maravilhosa, obviamente composta por Nigel, fez a primeira violinista, uma Maori da Nova Zelândia, ficar enternecida. Como deve ser sofrida a vida desses artistas, um superando o outro na capacidade de emocionar, e tendo que manter o controle, o absurdo controle motor que os músicos tem. Os olhos dele tinham uma tristeza profunda nesse momento, estavam pequeninos, testemunhas de algum sofrimento terrível, como só a música pode reproduzir.
O concerto foi transcorrendo fantástico, com mais e mais piadas durante o intervalo. Em um determinado momento, a corda do violino de Nigel quebrou. Em segundos, Nigel alegremente troca de violino com a primeira violinista, que por sua vez troca com o violinista que estava atrás dela que troca com quem estava atrás dele e assim foi indo até a última violinista, que cuidadosamente tirou a corda quebrada. Nigel começa a tocar no violino desconhecido para ele, e após alguns compassos, diz alto e claro "Very nice violin!", ao que a plateia teve que conter o riso novamente.
No intervalo, houve uma pequena confusão para saber quem estava com o violino de quem, mais risadas, e Nigel procede à troca da corda quebrada, em frente a todo mundo. Como é um processo meio lento, começa contando que todas as vezes que toca na Austrália a corda quebra. Enquanto trocava e afinava fez piadas sobre violistas e maestros. Os violistas são para os violinistas como os portugueses são para os brasileiros, se é que isso dá uma idéia do tipo de piada.
Fez muitíssimas macacadas mais, entre elas deu um "selinho" em uma moça da platéia. O namorado dela ficou meio mal... Mas o que achei mais fantástico foi o comentário sobre a força da música ao vivo.
"As gravações são uma coisa ótima, mas nada se compara a pessoas tocando para outras pessoas"
Tanto mais impactante se pensarmos que Nigel era o aluno favorito de Yehudi Menuhin, se pensarmos nos anos e anos que Nigel e os outros músicos da orquestra demoraram em melhorar, por puro amor à arte, em todos os fantásticos seres que eles encontraram, todos tendo dentro de si aquela urgência maravilhosa de querer mais e melhor. Todos os que lá estavam eram artistas, como os húngaros dizem "Müvész". Porque entre um "Müvész" e um instrumentista existe uma distância infinita. E o fato deles terem tocado para nós, este sim é o supremo ato de carinho e de amor.
Um comentário:
Embora não sejam os meus concertos preferidos e nem o Nigel Kennedy, apesar de discípulo do Menuhin, um Heifetz, fiquei com uma puta inveja de não estar presente a este concerto de orquestra desconhecida acompanhada de um Guarnieri del Gesú com corda rompida! Queria ser um aborígene esclarecido para estar lá.....bjundas !
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