2006-02-01

Esta escola é uma vergonha

Esta é uma história de ficção. Qualquer semelhança com eventos que tenham ocorrido ou venham a ocorrer no futuro terá sido pura coincidência.


Os corredores


Fernando estava doente. Não doente físicamente, mas doente de indignação. Desde que tinha entrado na faculdade, uma das melhores de Engenharia do país, passou a se sentir sozinho. E o motivo era claro. Tinha vindo para aprender, entretanto notou que o intuito dos seus colegas era outro: pegar o canudo. Antes da faculdade Fernando acreditava que essa diferença de objetivos não importava, bastaria a ele se concentrar em aprender e tudo funcionaria a contento. Em todas as faculdades do mundo há bons e maus professores, maus e bons alunos. Porque não gastar mais tempo com as matérias dos professores bons? O problema estaria automaticamente resolvido.


Na vida nada é tão simples assim... Para começar ele estava em minoria absoluta. Calculava que um aluno em vinte, aproximadamente, tinha real interesse em aprender. Isso tornava a sua posição extremamente fraca. Não se daria por vencido. Fernando inventou uma estratégia para conseguir o que queria. Primeiro, iria às primeiras aulas de cada professor no curso, para investigar se valeria a pena assistir ou não. Nessa aula, torturaria o desafortunado catedrático com perguntas pertinentes, para melhor avaliá-lo. Se fosse 'aprovado' nesse teste, o professor poderia estar certo de que Fernando assistiria a todas as suas aulas e iria bem em suas provas. No caso contrário, mais provável, diga-se de passagem, Fernando faltava a todas as aulas e só aparecia nos dias de prova. Se fosse reprovado havia uma segunda chance, seis meses depois, na qual Fernando normalmente passava. As provas eram similares, e bastava estudá-las para passar na próxima vez.


Ao longo do curso, percebeu que havia vários professores realmente interessados em ensinar. Alguns eram muito bons mesmo. A maioria no entanto era lamentável. Não importava. O curso era grátis, portanto tudo o que Fernando pudesse aprender lá era bem-vindo. O professor Absinto, por exemplo: os alunos o odiavam a ponto de pixar as paredes da escola com insultos de toda espécie. Ele entretanto era um dedicado professor. O motivo do ódio dos alunos era simplesmente o fato de suas provas serem rigorosas. Nada mais. Fernando sempre ia às aulas de Absinto. Não perdia uma.


A faculdade tinha uma estrutura feudal, onde os professores se entrincheiravam em suas cátedras. Não havia exposição alguma ao mundo exterior. Uma desculpa era a língua: se em algum lugar do planeta houvesse um curso em dialeto Tamil, por exemplo, não haveria muitos candidatos a professor disponíveis no mundo acadêmico. E Português, na sua versão brasileira, convenhamos, não passa de uma obscura língua latinoamericana. Entretanto essa era somente a desculpa. A razão das trincheiras estava na mentalidade de funcionário público e no afã de proteger o seu emprego a todo custo. Concorrência de fora jamais seria bem-vinda. Simples be-a-ba da mediocridade.


Os corredores da escola condiziam estranhamente com seu clima nefasto. Parecia que jamais alguém pensou em senso estético ou mesmo em praticidade. Escuros e compridos, pareciam túneis subterrâneos que conduziam a centros de tortura no Afganistão. Seriam desenhados para desestimular professores forasteiros? Apesar de extremamente opressor, as pessoas se acostumavam com esse ambiente. O ser humano é incrivelmente versátil.


Fernando não tinha intenção alguma de se acostumar com esse lugar. Queria, sim, aprender tudo o que pudesse e seguir adiante.



Controles


O semestre recém havia começado e Fernando já estava em plena atividade de avaliação de professores novos. Um deles chamou-lhe a atenção, o Prof. Avestrucci, de controles. De trato um tanto seco, ele parecia ser reconhecido em sua área. Havia publicado diversos livros sobre o assunto. Meio calvo, não muito alto e bem vestido, expunha conceitos com clareza. Fernando fez uma série de perguntas e ele não hesitou em responder. Parecia um dos bons, pensou, e programou-se para assistir sua segunda aula.


Ser capaz de prever o futuro é um velho sonho da humanidade. De certa forma todos fazemos algumas previsões... quando largamos uma pedra sabemos que cairá no chão. Um pássaro, entretanto, poderia surprender-nos com um voo rasante inesperado e levar a pedrada na cabeça. Sabemos que as chances são pequenas, mas quando algo similar acontece, ficamos boquiabertos. Assim se sentiu Fernando quando chegou para a segunda aula.


Não estava pensando em nada especial quando chegou. Mas a sala estava diferente. Parecia uma manifestação contra o imperialismo americano coordenada pela UNE. Faixas e cartazes que diziam “Fora Avestrucci” e uma série de impropérios contra o coitado. Tudo coordenado, preparado de antemão, havia algo estranho acontecendo, algo que Fernando não entendia, estava embasbacado. Havia um clima de expectativa tensa, excitação entre os alunos, todos esperavam o Prof. Avestrucci chegar para ver sua reação. Fernando perguntava o motivo disso tudo, sem conseguir resposta. Nada fazia sentido algum para ele.


Quando Avestrucci chegou, viu a incrível manifestação e ficou paralisado por um instante. Fernando ainda conseguiu ouvir o homem murmurando “Eu não preciso disso” enquanto ia embora, a passo rápido, olhando para baixo. O entusiasmo dos alunos era geral. Aplausos e vivas, assovios e urros. Fernando ainda estava se perguntando o que tudo isso queria dizer, quando aparece um sujeito baixinho, que todos recebem com a maior felicidade. Professor Robertinho, seja bem vindo...


Fernando ainda não tinha entendido nada sobre o episódio. Continuava estarrecido. O que mais lhe chamou a atenção é a sincronia perfeita entre a saída de Avestrucci e a entrada de Robertinho. Ele sabia que isso não podia ser coincidência. O ato tinha sido orquestrado, ainda que ele não conseguisse ver o regente. Não havia dúvida: uma sinfonia macabra soava perfeita e tinha sido composta nos bastidores.


Robertinho começou sua aula. Apresentou-se como professor suplente de Avestrucci. Fernando observava desconfiado: óbviamente o cara era recém-formado. O seu aspecto e forma de agir estavam mais para um aluno do que para um professor. “Sem preconceitos” - pensa Fernando - “Este cara pode até ser um gênio, vamos descobrir...” e iniciou a sabatina de boas vindas a professores novos. Suas suspeitas foram confirmadas: Robertinho era “inho” em tudo: covardezinho, escapulia das perguntas como podia; mediocrezinho, tentava contra-atacar insinuando que as perguntas não eram pertinentes; inflexívelzinho, fazia de tudo para se ater a um roteiro pré-estabelecido... sabia que qualquer deslize seu seria fácilmente detectado. Decepcionante. “Não há livro texto” - declara - “O curso será baseado em anotações de classe”. Isso é incrível! Um cara que mal sabe a matéria dispensa os textos sobre o assunto e decide dar aula baseado na sua própria cabecinha? Fernando ficou furioso.


Tentou reverter a situação, falou com colegas só para ser recebido por indiferença generalizada. Todos estavam satisfeitos com a troca... algo assim como “Robertinho é um dos nossos”. Um dos nossos o quê? Não foi capaz de convencer nem um único colega a tentar trazer o Prof. Avestrucci de volta. No fim estava desanimado. Que gasto inútil de energia. Um colega parece ter ficado com pena de Fernando, e veio lhe falar no fim da aula.


-Fernando, você precisa entender que essa matéria é inútil. O Professor Avestrucci é famoso por seu alto índice de reprovação. Não precisamos sofrer mais essa. Já tivemos que engolir Eletromag com o Absinto. O importante é terminar esta faculdade de merda de uma vez.


-Você pode pensar dessa maneira mas eu discordo. Eletromag nem foi tão ruim assim. Qual é a vantagem de trocar para o Robertinho? O cara não sabe patavinas. É um enrolador. Está na cara. Vamos aprender o que com um cara desses?


-O que vamos aprender não sei, mas sei que vamos passar, e é isso que me preocupa no momento.


-Então essa manobra estava toda “armada”?


-...


Não havia mais o que fazer. Fernando tinha entendido tudo. Até a motivação do Robertinho já lhe era clara: dar aula para mais uma turma, ficar entrincheirado no seu postinho, carguinho de professorzinho mediocrezinho que era. A função real da faculdade não contava absolutamente nada. “E que tudo o mais vá para o infernoooooo.....”


Uma prova


Claro que Fernando não veio às aulas. Prestigiar Robertinho com sua presença seria ir contra tudo aquilo em que acreditava. O tempo foi passando e chegou o dia da prova de controles. Desanimado, Fernando deu uma olhada em alguns livros sobre o assunto. Não copiou o caderno, mesmo sabendo que as provas eram com consulta. Pensou: “consulta ao caderno, realmente esse Robertinho deve estar brincando”. Era uma situação absurda, realmente.


A prova consistia em duas questões, cada uma valendo a metade da prova. Fernando leu o enunciado da primeira, ela fazia sentido. Após algum trabalho chegou a um resultado. Checou e contra-checou o exercício. Tinha absoluta certeza de ter acertado a metade da prova. Pensou: “Cinco não está mal para quem não estudou e não tinha o material de consulta”. Entregou a prova assim mesmo e saiu.


Uma semana depois, as notas foram afixadas. Fernando ficou atônito: quase todos tinham tirado dez. Para dizer a verdade, havia um 6,5 e um zero. O zero era dele, naturalmente. “Há algo estranho aqui novamente...” pensou. Conversando com colegas eles explicaram que a prova não passava de uma cópia do caderno. O professorzinho de araque tinha resolvido as duas questões da prova na lousa, antes da prova e todos copiaram cuidadosamente... Pela primeira vez, Fernando olha para o caderno de um dos colegas. Em segundos, percebeu qual o problema: o Robertinho tinha errado um sinal em uma equação, e todos repetiram seu erro... nas provas.


Fernando começou a considerar sua situação patética: o único que tinha acertado a questão era também o único zero... começou a rir. Os colegas o olhavam preocupados: não vá Fernando pedir revisão ou algo assim... Robertinho seria forçado a reduzir a nota de todos os demais!


Claro que não resisitiu. Tinha que ver a cara do professorzinho... Foi à sua sala, controlando o riso, tentando parecer sério... Toc toc toc.


-Pode entrar.


-Boa tarde, professor. Gostaria de pedir uma revisão na prova.


-Como não... deixe-me ver... ah... sua situação não é muito boa.


Claro... tinha tirado zero... Robertinho pega uma prova com dez para usar como gabarito. Fernando antecipou-se e disse:


-Professor, acontece que não quero comparar a prova com a dos meus colegas, quero que o senhor me mostre o que está errado na minha primeira questão.


Era impressão sua ou o Robertinho estava ficando pálido? Fernando continuou calmamente:


-Os coitadinhos dos meus colegas não fizeram nada de errado. Só copiaram o caderno do jeitinho que o senhor ensinou. O problema é que havia um pequeno detalhe errado na lousa...


Não era impressão: ele estava suando frio. Não só suando mas pálido e trêmulo. Do que ele teria medo?


-... este sinal, está vendo? A partir daqui tudo muda. Mas por favor não diminua a nota dos meus coleguinhas, eles não fizeram nada de errado... coitados.


O cara já estava se retorcendo na cadeira. Murmurou:


-Bom.... não sei.... talvez possa lhe dar meio ponto....


Fernando estava se divertindo muitíssimo... mudou o tom:


-Meio ponto uma ova! Não saio daqui sem 5 pontos. Não fui eu quem errou.


Robertinho estava de dar pena. Ainda assim Fernando não entendia porque o cara resistia tanto em aumentar-lhe a nota. Sua nota foi subindo, subindo... quando chegou em 4,5 Robertinho parou de aumentar. Porque o miserável não dava 5 para ele de uma vez? Decidiu não perder mais tempo com esse verme e aceitar os 4,5... Mas qual era o problema em dar cinco?


Depois de algum tempo, Fernando entendeu. Todo o esquema ficava claro: haveria uma contundente prova contra o Robertinho se ele desse 5 para Fernando. Mas era tudo tão mesquinho... tudo se resumia em Robertinho manter a sua “boquinha”... e os colegas só pensavam em passar. Fernando pensou se devia levar isso tudo adiante e denunciar o cara para o diretor ou reitor ou para o jornal nacional que fosse. Mas teria toda a turma contra ele... seria um desgaste brutal. Fernando ainda teria que passar anos nessa vergonhosa faculdade... pelo menos seria mais fácil sem o ódio de seus colegas.


Fernando aprendeu bastante nesse curso. Percebeu que o fundamental problema da escola não estava nos professores e sim nos alunos. Seus colegas faziam de tudo para a escola piorar. E os que se formavam já entravam para a gangue... lindo isso. Quando saíssem da faculdade diriam a todos quão boa a faculdade era, a melhor do Brasil, bla bla bla... Mas os sabotadores eram eles. Eles ajudaram o Robertinho, que ganhou excelente avaliação dos alunos. Robertinho seguiu recebendo dinheiro público por anos, e aperfeiçoou seus métodos medíocres. Fernando era co-responsável pelo atraso. Sentia culpa por tudo isso.


Claro que sempre haveria professores bons. Mas cada vez menos. Só os idealistas ficariam. Minoria absoluta, seriam empurrados para o canto enquanto testemunhavam a piora inexorável. Mais e mais dinheiro público iria ser devorado por parasitas para desespero dos que realmente quisessem ensinar, para desgraça de quem quisesse aprender. Comissões de alunos se certificariam de que fosse fácil passar, de que as notas fossem sempre altas. Mas não havia problema. Tratava-se somente de uma faculdade obscura, cujas aulas eram ministradas em um obscuro dialeto sul-americano.

2 comentários:

Anônimo disse...

Este conto também reflete o que acontece com o mestrado e o doutorado nas instituições públicas deste país. Com a massificação do mestrado e doutorado (todo mundo tem que fazer e até já criaram o mestrado profissional) a mediocridade já está imperando. Antes fazer mestrado e doutorado tinha seu charme, agora uma pessoa que tenha consciência do teatro se pergunta duas vezes se vale a pena fazer realmente.
Gostei da tua história. Abraço, Cynthia.

Anônimo disse...

Cynthia,

Obrigado pelo comentário. Nunca fiz mestrado e nem doutorado simplesmente porque na graduação já aconteciam eventos estranhos como esse...

Queria comentar ainda que a mediocridade é um fenômeno mundial. O problema do Brasil é que a burrice e a preguiça são consideradas valores nacionais. Qualquer "insurgente revolucionário" que queira destruir esses "valores" é atacado imediata e sistematicamente.

Volte sempre!