2006-03-31

A Gigantesca Inversão

Craddle Mountain - Tasmânia



Um universo paralelo, onde tudo é o oposto do que deveria ser. Uma imagem no espelho, o esquerdo é direito, o direito é esquerdo. O bem é mal e o mal é o bem.

Por algum motivo, esse tema tende a se repetir nas velhas histórias de ficção científica. Creio que como é tão difícil imaginar as reais diferenças entre mundos, é mais fácil imaginar algo muito semelhante, só que ligeiramente alterado, e prever as consequências.

Mas esse tipo de inversão ocorre, sim. É mais comum do que parece. Algo muito sutil, os "valores" podem ser corrompidos e invertidos à vontade. É que na verdade os valores são relativos. Dependem de uma convicção interior, são um postulado básico de cada um. Pode-se falar de valores de uma sociedade se houver uma certa concordância entre os valores individuais. Em certas sociedades, valores que para nós são absurdos sobem à categoria de lei. Na Malasia, por exemplo, se alguém casar com uma moça Malay sem se converter ao islamismo, é preso. É lei. Consenso. Faz parte dos valores locais.

Valores estapafúrdios para uns são naturais para outros. Mas os valores não são somente relativos. Há formas de os caracterizar, classificar. Os critérios são objetivos, sim. Isso se acharmos que progresso econômico ou intelectual são critérios válidos...

Galileo Galilei foi um dos primeiros a usar o método experimental. O problema é que com suas descobertas acabou por se opor a dogmas do catolicismo. Ele dedicou intensos esforços e tempo a se defender da ignorância vigente. Por pouco não foi condenado em um processo que poderia ter terminado como o de Giordano Bruno, que por muito menos foi queimado em uma fogueira. Galileo tinha amigos influentes, e, com uma simples renúncia a suas descobertas, negação dos seus valores, teve a pena comutada para prisão domiciliar vitalícia. O peso que Galileo carregou por se opor aos valores da maioria o impediu de pesquisar mais. "Eppur si muove" passou a ser considerado o símbolo de uma resistência, da imposição de valores progressistas sobre idéias conservadoras.

Estranho Isaac Newton ter nascido no ano que Galileo morria. Mesmo em sua prisão domiciliar, Galileo escreveu uma obra prima, "Discorsi e Dimostrazioni Matematiche, intorno a due nuove Scienze". O manuscrito foi contrabandeado até a Holanda, onde foi publicado e traduzido para diversas línguas. Nunca se soube ao certo, mas muitos especulam que Newton teve acesso a esta obra, onde estão as bases para duas das suas três leis. A terceira, da gravitação, foi demonstrada de maneira genial usando uma ferramenta desenvolvida pelo próprio Newton: o cálculo diferencial.

Assim como Galileo ganhou a danação eterna pelas suas descobertas, Newton recebeu premios do seu governo. O título de "Sir" e um emprego vitalício. É fácil notar a diferença de valores dos ingleses, holandeses e italianos.

O mais interessante, entretanto, é o reconhecimento de Newton:
If I have seen further, it is by standing on the shoulders of giants.
Um dos maiores gênios de todos os tempos teve a humildade de reconhecer os esforços combinados que o tinham levado até ali. Não podia agir diferentemente. O reconhecimento fazia parte de seus valores, como teria feito parte dos de Galileo.

Se a Itália desencorajou a Ciência no século 17, existe hoje, agora mesmo, em pleno século 21, um lugar onde todo o pensar é desencorajado. Não só a Ciência, que às vezes parece continuar se desenvolvendo por puro amor à arte empurrada adiante por alguns poucos teimosos reclusos.

Neste lugar qualquer discussão lógica é atacada com o pretexto de que é entediante. Qualquer esforço intelectual é destruído por fugir às normas de convivência. O estudo é tomado como uma chacota, colar e plagiar são consideradas as manifestações mais elevadas da inteligência. O dinheiro é valorizado, mas sempre e quando sua obtenção tenha sido devida a algum artifício malandro, a algum drible do sistema. Um lugar onde, se perguntar às meninas o que querem da vida, obtém-se a cândida resposta: "Quero ser puta!".

Onde tudo que é público é corrupto e ninguém se importa de não receber nada em troca dos impostos que paga. Onde a favela e a miséria crescem continuamente, mas quem lucra com a ignorância não faz outra coisa que incentivar seu crescimento, institucionalizando-as até, apelidando estes focos de miséria de "Comunidade Favela da Rocinha" em mapas oficiais. Onde presidiários instalam verdadeiros "Call Centers" com celulares roubados para extorquir trabalhadores, e manter suas redes de tráfico em operação. Onde presídios tem filas de visitantes para fazer sexo com presos em troca de favores ou como resultado de chantagens.

Onde qualquer tentativa de mudança, mesmo que só uma idéia, é bloqueada e atacada e desencorajada. Onde os que vivem bem não se importam de ter bairros miseráveis embaixo de seus pés, pois daí vem os seus serviçais. Onde a malandragem é considerada a base fundamental de uma rica cultura nacional, ninguém se importando com os recursos roubados de hospitais e escolas. Um lugar aonde o presidente, eleito por milhões de habitantes, não sabe ler e ninguém vê nenhum problema nisso. Onde quando se ouve falar de um sequestro, já vem a explicação... "Ah, era rico, né? Por isso foi sequestrado." Tudo está em ordem. Onde se mata por uma bebida... explicação? "Ah, era pobre, né? Onde morava? Por isso morreu." Ou se meteu com tráfico. "Ah, então é isso." O ministro roubou? E já vem a explicação: "Se eu fosse ministro, também roubava." E todos concordam com algo tão sensato. Já nem as sobrancelhas levantam por algo tão corriqueiro. Afinal era dinheiro de ninguém.

Onde cheques roubados são vendidos na rua. Todo mundo sabe. E ninguém se importa. Onde traficantes mandam no exército. Onde tudo se negocia para conseguir a saída mais ignóbil, mas fácil. Onde a mentira vale mais que a verdade, pois requer esperteza, o tipo de esperteza considerado de valor. Onde o descaro vale muito mais que a honestidade. Há algo mais chato que um cara honesto?

Simplesmente, neste lugar o valor tornou-se um não-valor. É a negação de tudo que alguma vez a sociedade ocidental prezou. A desconstrução total.





Um comentário:

Anônimo disse...

Zappi, é isso aí. Não tenho absolutamente nada a acrescentar ao seu texto. Tampouco tenho a retirar. Nem parece que você não mora mais aqui...