Despediu-se dos amigos que o deixaram na rodoviária. Tinham ido ao cinema, tomado cerveja, discutido política de bar em bar no Rio. Ele sempre achara o Rio muito estranho. Quando chegava, se ninguém o esperasse na rodoviária, costumava tomar um ônibus até o Leblon. Os morros cobertos de verde o faziam pensar em um cheiro de mato, uma chuva morna lavando a alma da noite. Ao mesmo tempo era cidade, era parque, eram velhos edifícios sem muita convicção de estilo. Ora opressivos edifícios públicos, ora simpáticos apartamentos com terraço que o faziam lembrar de algum lugar na Europa... Não, o calor era diferente, o cheiro do Rio era muito diferente de qualquer outro lugar. Quando chovia então? Aquela chuva abundante, generosa, as brumas de Copacabana ao amanhecer, a Lagoa. O Rio era espetacular, mas o era de um modo sempre imprevisível. Um passeio e, inesperada, a pedra da Gávea. Outro passeio, e o Corcovado. O MAM. O Jardim Botânico. URCA.
O Rio também era feio, de um modo escuro, quente e húmido. Nas sombras de prédios do centro, os engraxates e os barbeiros, as pessoas sem o que fazer, os mendigos sujos. O calor, que parecia queimar a pele, o fazia querer que chovesse, o obrigava a gostar da chuva do Rio. Mas se formos falar de feiúra, nada superava a favela. Alegremente ignorada pelos cariocas, de lá vinham faxineiras, porteiros, cozinheiras gordas e negras, que teimavam em sorrir sempre. Empregadas e taxistas, pintores e eletricistas, cada um tinha algum canto no morro. Em um passo, de um lugar riquíssimo chegava-se à miséria absoluta. Isso sim, com um sorriso de orelha a orelha. Tudo sempre parecia bem.
Essa noite, despediu-se dos amigos que o deixaram na rodoviária. Era a noite do dia 23. Queria passar o Natal com a família, em São Paulo. Notou então algo estranho. A rodoviária, que já não era o lugar mais bonito do mundo, estava escura e cheia de gente. Muito cheia. Descamisados, no calor da noite, faziam pensar em navios negreiros. Cheiro de suor e de xixi. Engoliu em seco e entrou, foi direto procurar os caixas para comprar uma passagem. Uma fila enorme e meia hora depois, uma senhora negra bonachona o atendeu. Não tinha lugar, o próximo era no ônibus extra das seis da manhã do dia seguinte. Seis da manhã? Não tem jeito? Não tinha. Já era tarde da noite, não valia a pena voltar para a cidade, o ônibus saía muito cedo. De que adiantava ir, dormir quatro horas e voltar correndo para a rodoviária? Comprou a passagem. Esperaria ali mesmo.
Não imaginava que a espera fosse tão longa e tenebrosa. Milhares, quase todos homens. Como ele, queriam passar o Natal com a família. Olhava ao redor, o cheiro só fazia piorar. Quanta gente e que fedor! Esse pessoal já tinha viajado dias sem tomar banho. Não sorriam, encaravam ameaçadores, pareciam marginais. Pensou que se caísse no sono, seria roubado. Tinha que ficar acordado, permanecer atento.
Havia policiais rondando pela estação. Cada vez que viam alguém caindo no sono, batiam com o cassetete nos bancos e gritavam, tomando todo mundo de sobressalto. O lugar parecia o Carandiru, era realmente deplorável. Os policiais riam, falavam alto.
As horas passavam devagar, decidiu sair andando pela estação. Desanimado, pensava que teria que ficar sentar do lado de algum marginal por mais seis ou sete horas no ônibus até São Paulo... quanto melhor não seria voltar para a praia... Não! Não adiantaria postergar, teria que voltar para São Paulo de alguma maneira, em algum momento. Tinha que ter paciência, controlar-se um pouco, agüentar firme.
Foi numa dessas voltas pela rodoviária que a viu. Parou de pensar em si por um momento, e pensou naquela moça, que parecia estar sozinha. Coitada! Ela estava sentada, rígida, com óculos escuros e ouvindo música em um walkman. Ficou observando, a situação dela era muito pior que a dele, afinal era moça e sozinha. Também devia ter ficado presa naquele lugar como ele, por acidente. Parecia-lhe que ela tentava se isolar do ambiente, pareciam inúteis os óculos escuros naquele lugar, de noite... faziam com que parecesse cega. Seria cega? - pensou, divertindo-se um pouco com a idéia. Observava-a de longe, um certo instinto fazia com que se preocupasse. Se algo lhe acontecesse ele sempre poderia chamar um policial, pedir ajuda. Esqueceu-se completamente de seu problema, tinha encontrado um assunto para pensar, para passar o tempo. Observava-lhe os movimentos. Ela olhou para o relógio, discretamente. Definitivamente, não era cega.
Ela realmente estava fora do lugar, naquele ambiente medonho. Um pensamento fugaz veio à sua mente, pensou como seria bom se ela se sentasse ao seu lado, no ônibus. Riu da idéia. Era impossível! Menos de uma chance em mil, estimava, confiante. Que pena, ela era a única com quem ele gostaria de estar nesse ônibus... a única dentre todos os milhares de pessoas dessa tenebrosa estação. Tirou a idéia da cabeça. Era inútil e ele sabia, mas essas idéias lhe ajudavam a passar o tempo. Como faria depois, durante as longas horas no ônibus?
Pensou em falar com ela, talvez ela gostasse de ter alguém para conversar, tiraria os óculos e... mas estava tão tensa, assustada. Decidiu não arriscar, talvez ela não gostasse da aproximação. Estava satisfeito por ter algo em que pensar e passar o tempo.
Os policiais faziam mais e mais barulho à medida que mais gente ia desmaiando de cansaço nos bancos. Era claro que eles faziam isso para evitar que todos os mendigos do Rio fossem dormir nesses bancos sujos e transformassem a rodoviária na casa deles.
Amanhecia finalmente. O seu ônibus estava para sair. Foi embarcar, desanimado com a idéia de ficar tanto tempo sentado até chegar em casa. Mais desanimado ainda se descobrisse que ao seu lado estava sentado algum descamisado mal-encarado...
Ao chegar ao seu assento marcado, ficou surpreso: do seu lado estava sentada a moça do walkman e dos óculos escuros. Continuava tensa e ele escondeu como pode sua satisfação. Disse algo como "com licença?" baixinho, ao que ela não respondeu. Não conseguia acreditar, as chances de se sentar com ela eram baixíssimas. Teriam os deuses ajudado? Existiriam anjos afinal?
Estava exausto, naturalmente. Ela também, talvez ainda mais por ter permanecido tensa durante toda a noite. O ônibus partiu ronronando, e para sua surpresa ela, sem dizer palavra, virou um pouco de lado e apoiou a cabeça em seu ombro. Ela adormeceu lindamente, enquanto ele controlava suas mãos que queriam segurá-la, protegê-la. Relaxou finalmente, sua cabeça apoiada na dela. Ficou nesse estado maravilhoso entre sono e realidade, perdendo momentos, ganhando sonhos. As horas fluíam como minutos, não queria que esse instante acabasse...
Foram pegos de surpresa. Quase cairam com a freada brusca. Não entendeu quando os marginais entraram e encharcaram tudo com gasolina. Ela gritou. O fogo veio de trás do ônibus, as pessoas se pisoteavam. De alguma maneira ele saiu a tempo, com o braço queimado, empurrado pela multidão. Caiu no chão, olhou para cima. Ainda viu a moça na janela, o ônibus queimava. Muito fogo, não havia como voltar. A moça já não estava na janela. Lembra-se de ter gritado, não parava de gritar. Assassinos. Assassinos malditos. Gritava desesperado, gritava sozinho.
O Rio também era feio, de um modo escuro, quente e húmido. Nas sombras de prédios do centro, os engraxates e os barbeiros, as pessoas sem o que fazer, os mendigos sujos. O calor, que parecia queimar a pele, o fazia querer que chovesse, o obrigava a gostar da chuva do Rio. Mas se formos falar de feiúra, nada superava a favela. Alegremente ignorada pelos cariocas, de lá vinham faxineiras, porteiros, cozinheiras gordas e negras, que teimavam em sorrir sempre. Empregadas e taxistas, pintores e eletricistas, cada um tinha algum canto no morro. Em um passo, de um lugar riquíssimo chegava-se à miséria absoluta. Isso sim, com um sorriso de orelha a orelha. Tudo sempre parecia bem.
Essa noite, despediu-se dos amigos que o deixaram na rodoviária. Era a noite do dia 23. Queria passar o Natal com a família, em São Paulo. Notou então algo estranho. A rodoviária, que já não era o lugar mais bonito do mundo, estava escura e cheia de gente. Muito cheia. Descamisados, no calor da noite, faziam pensar em navios negreiros. Cheiro de suor e de xixi. Engoliu em seco e entrou, foi direto procurar os caixas para comprar uma passagem. Uma fila enorme e meia hora depois, uma senhora negra bonachona o atendeu. Não tinha lugar, o próximo era no ônibus extra das seis da manhã do dia seguinte. Seis da manhã? Não tem jeito? Não tinha. Já era tarde da noite, não valia a pena voltar para a cidade, o ônibus saía muito cedo. De que adiantava ir, dormir quatro horas e voltar correndo para a rodoviária? Comprou a passagem. Esperaria ali mesmo.
Não imaginava que a espera fosse tão longa e tenebrosa. Milhares, quase todos homens. Como ele, queriam passar o Natal com a família. Olhava ao redor, o cheiro só fazia piorar. Quanta gente e que fedor! Esse pessoal já tinha viajado dias sem tomar banho. Não sorriam, encaravam ameaçadores, pareciam marginais. Pensou que se caísse no sono, seria roubado. Tinha que ficar acordado, permanecer atento.
Havia policiais rondando pela estação. Cada vez que viam alguém caindo no sono, batiam com o cassetete nos bancos e gritavam, tomando todo mundo de sobressalto. O lugar parecia o Carandiru, era realmente deplorável. Os policiais riam, falavam alto.
As horas passavam devagar, decidiu sair andando pela estação. Desanimado, pensava que teria que ficar sentar do lado de algum marginal por mais seis ou sete horas no ônibus até São Paulo... quanto melhor não seria voltar para a praia... Não! Não adiantaria postergar, teria que voltar para São Paulo de alguma maneira, em algum momento. Tinha que ter paciência, controlar-se um pouco, agüentar firme.
Foi numa dessas voltas pela rodoviária que a viu. Parou de pensar em si por um momento, e pensou naquela moça, que parecia estar sozinha. Coitada! Ela estava sentada, rígida, com óculos escuros e ouvindo música em um walkman. Ficou observando, a situação dela era muito pior que a dele, afinal era moça e sozinha. Também devia ter ficado presa naquele lugar como ele, por acidente. Parecia-lhe que ela tentava se isolar do ambiente, pareciam inúteis os óculos escuros naquele lugar, de noite... faziam com que parecesse cega. Seria cega? - pensou, divertindo-se um pouco com a idéia. Observava-a de longe, um certo instinto fazia com que se preocupasse. Se algo lhe acontecesse ele sempre poderia chamar um policial, pedir ajuda. Esqueceu-se completamente de seu problema, tinha encontrado um assunto para pensar, para passar o tempo. Observava-lhe os movimentos. Ela olhou para o relógio, discretamente. Definitivamente, não era cega.
Ela realmente estava fora do lugar, naquele ambiente medonho. Um pensamento fugaz veio à sua mente, pensou como seria bom se ela se sentasse ao seu lado, no ônibus. Riu da idéia. Era impossível! Menos de uma chance em mil, estimava, confiante. Que pena, ela era a única com quem ele gostaria de estar nesse ônibus... a única dentre todos os milhares de pessoas dessa tenebrosa estação. Tirou a idéia da cabeça. Era inútil e ele sabia, mas essas idéias lhe ajudavam a passar o tempo. Como faria depois, durante as longas horas no ônibus?
Pensou em falar com ela, talvez ela gostasse de ter alguém para conversar, tiraria os óculos e... mas estava tão tensa, assustada. Decidiu não arriscar, talvez ela não gostasse da aproximação. Estava satisfeito por ter algo em que pensar e passar o tempo.
Os policiais faziam mais e mais barulho à medida que mais gente ia desmaiando de cansaço nos bancos. Era claro que eles faziam isso para evitar que todos os mendigos do Rio fossem dormir nesses bancos sujos e transformassem a rodoviária na casa deles.
Amanhecia finalmente. O seu ônibus estava para sair. Foi embarcar, desanimado com a idéia de ficar tanto tempo sentado até chegar em casa. Mais desanimado ainda se descobrisse que ao seu lado estava sentado algum descamisado mal-encarado...
Ao chegar ao seu assento marcado, ficou surpreso: do seu lado estava sentada a moça do walkman e dos óculos escuros. Continuava tensa e ele escondeu como pode sua satisfação. Disse algo como "com licença?" baixinho, ao que ela não respondeu. Não conseguia acreditar, as chances de se sentar com ela eram baixíssimas. Teriam os deuses ajudado? Existiriam anjos afinal?
Estava exausto, naturalmente. Ela também, talvez ainda mais por ter permanecido tensa durante toda a noite. O ônibus partiu ronronando, e para sua surpresa ela, sem dizer palavra, virou um pouco de lado e apoiou a cabeça em seu ombro. Ela adormeceu lindamente, enquanto ele controlava suas mãos que queriam segurá-la, protegê-la. Relaxou finalmente, sua cabeça apoiada na dela. Ficou nesse estado maravilhoso entre sono e realidade, perdendo momentos, ganhando sonhos. As horas fluíam como minutos, não queria que esse instante acabasse...
Foram pegos de surpresa. Quase cairam com a freada brusca. Não entendeu quando os marginais entraram e encharcaram tudo com gasolina. Ela gritou. O fogo veio de trás do ônibus, as pessoas se pisoteavam. De alguma maneira ele saiu a tempo, com o braço queimado, empurrado pela multidão. Caiu no chão, olhou para cima. Ainda viu a moça na janela, o ônibus queimava. Muito fogo, não havia como voltar. A moça já não estava na janela. Lembra-se de ter gritado, não parava de gritar. Assassinos. Assassinos malditos. Gritava desesperado, gritava sozinho.
5 comentários:
Realidade ou ficção?.
Somos culpados ou vitimas de intimidação,censura e manipulação eleitoral?
Temos um contista na Austrália. Com boa mistura de jornalismo.
Abs.
Zappi,
O texto é excelente porque mostra todos os crueis contrastes da vida Brasileira.
Triste porque tambem mostra a crueldade do fato, que os brasileiros são VITIMAS E CULPADOS DE SE DEIXAREM INTIMIDAR DA MANEIRA QUE ESTÃO INTIMIDADOS.
Conto, ficção ou jornalismo ATUALMENTE NÃO VEM AO CASO.
O QUE VEM AO CASO é a situação bem contada no texto é verdadeira e de grande actualidade!!!!
Realmente esta cada vez pior a vida cotidiana de todos os Brasileiros RICOS,POBRES E CLASSE MEDIA ALTA QUE NÃO é mais media alta e sim empobrecida pelo governo dos PTRALHAS E MOLUSCO.
Na minha opinião os Brasileiros não deve perder tempo com o partido do FHC POR QUE SEMPRE ACHEI QUE ELE "O PETRALHA MOR"
Oposição? Esta DAMA deve nascer na revolta dos Brasileiros.A força esta no povo e não nos partidos politicos.
Tudo não passa de crescer a auto estima de cada Brasileiro e a coragem de cocolocar os pingos nos devidos lugares torna-se evidente PORQUE TODOS JA ENTEDERAM QUE NÃO PODEM CONTAR COM A MIDIA COMPRADA PELO MOLUSCO.
TUDO ESTA NAS MÃOS DOS BRASILEIROS!!!
Zappi,
Li seu comentario a respeito da "AVENTURA" vivida e salva pelo uso do celular.
Obrigado.Não sei expressar bem sobre seu gentil comentario, que considerei, como se tivese você dado força de alguma forma.
Abrs
P.S: Por onde anda você?????????????? Não imagine que você seja amargurado por dizer realiadades que são dificeis de ser compreendido por certos Brasileiros; Saiba que existe muitos blogueiros esperando você por aqui.Então não demore, volteeeeee loooogoooooooooooo!!!!!!!!!!!!
Agora ou nunca! Precisamos da ajuda de todos! Nosso objetivo:
melar o projeto do Lula em fazer o presidente da Câmara e assim impedi-lo na sua costumeira prática autoritária em intervir cada vez mais e vergonhosamente no Legislativo, sempre com objetivos espúrios!!!!
Nem Arlindo Nem Aldo!
Detalhes:
http://alkimistasdobrasil.blogspot.com
http://http://andrewernner.blogspot.com/
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