2008-04-15

Como roubar 4 bilhões dos pobres


por Augusto Nunes:

Fardado de guerreiro pronto para o combate, um revólver na mão e o chapéu tricorne na cabeça, o tenente-coronel Antonio Tejero Molina, escoltado por 200 integrantes da Guarda Civil, invadiu o Parlamento espanhol em 23 de fevereiro de 1981.

Apontou a arma para a cabeça do presidente da instituição e ordenou que os deputados se agachassem. "Todo el mundo ao suelo!", berrou.

Só três ignoraram o grito do golpista. Só três preferiram a morte provável à capitulação desonrosa.

Um deles foi Santiago Carrillo, secretário-geral do Partido Comunista.

Por que decidira continuar sentado? "Estou velho demais para virar covarde", explicou. E se Tejero Molina cumprisse a ameaça de atirar nos insubordinados? "É preciso saber morrer", ensinou Santiago Carrillo. Aos 66 anos, ele acabara de mostrar que já aprendera a envelhecer com dignidade.

Também saberia morrer. Entre o dia do golpe e a hora da partida, penitenciou-se por erros do passado, ajudou a reunificar a nação estilhaçada pela guerra civil, esforçou-se para ressuscitar a democracia. Conheceu a prisão, o exílio, a clandestinidade e a derrota.

Nunca pensou em ser indenizado pelo governo.

Não existe na Espanha nada parecido com o Programa Bolsa Ditadura.

Como em todos os países que prezam a decência, a ética, a justiça e a vergonha na cara, também ali são concedidas indenizações a cidadãos prejudicados pelo Estado que os mantinha sob custódia. O rei Juan Carlos teria de vender até o trono se, em vez de incontáveis ex-combatentes que acham vergonhoso pedir dinheiro pelo que fizeram, a Espanha abrigasse milhares de guerreiros de araque, que só se mobilizam para a batalha contra os cofres públicos.

Caso fosse brasileiro, bastaria a Santiago Carrillo identificar-se no guichê do organismo no qual sobra dinheiro da Viúva e falta sensatez.
Voltaria para casa com a mais vistosa das medalhas concedidas a um Herói da Resistência e uma bolsa-ditadura maior que a soma abocanhada por toda a turma de jornalistas que fez bonito na festa de formatura.

O ministro Tarso Genro, atual patrocinador da gastança, fez questão de ouvir ao vivo o discurso incendiário do orador Ziraldo Alves Pinto.

Entre indenizações corretíssimas, doações inexplicáveis e mensalidades fixadas por regras misteriosas, a União desembolsou, dos anos 90 para cá, pelo menos R$ 2,4 bilhões. O bloco dos ministros perdulários é liderado por Márcio Thomaz Bastos (R$ 1,9 bilhão ao longo da gestão).

Tarso Genro luta bravamente pela liderança. Só nos três primeiros meses deste ano foram torrados R$ 122,3 milhões. Dos mais de 60 mil casos apreciados pela comissão desde 2001, foram analisados 37.200. Faltam 23.100. Tarso tem boas chances de chegar lá.

No final do governo Lula, calcula-se que o Brasil terá distribuído entre os beneficiários pelo Programa Bolsa Ditadura cerca de R$ 4 bilhões.

É uma quantia apreciável: para indenizar as vítimas do Holocausto promovido pelos nazistas, a Alemanha entregou R$ 5 bilhões.

Na lista dos premiados não figura nenhum participante da guerrilha do Araguaia. Em contrapartida, inclui dois adultos indenizados por sofrimentos que os alcançaram no ventre da mãe. Só no Brasil a ditadura foi combatida até por fetos.

Era revolução ou investimento?, perguntou Millôr Fernandes.

É isso.

2 comentários:

Anônimo disse...

Caro Paulo,
É inacreditável que essa desfaçatez da bolsa ditadura não tenha gerado maior revolta. Talvez parte da explicação esteja no fato de que no fundo faz parte arraigada da índole brasileira (até mais da chamada zelite do que do povinho sofrido): o jeitinho, a boca, o apoio cultural, o chefe de gabinete, o qüinquenio, a licença premio, o cargo em comissão e as mais variadas formas de "tetologia" (vem de mamar na teta).
A propósito transcrevo abaixo minha carta que a Folha de S.Paulo publicou em 5-4-08

Abraços
Claudio Janowitzer


INDENIZAÇÃO
"Assim como ocorre com um já existente bando de "tetológicos" (os "pendurados na teta'), Ziraldo e Jaguar passarão a receber do erário uma reparação mensal pelos supostos danos às respectivas carreiras profissionais, causados no período da ditadura militar.
Ainda bem que esses pagamentos não saem do mesmo lugar de onde deveriam sair os recursos faltantes para hospitais decentes, segurança confiável e educação de qualidade.
Ou saem?"
CLAUDIO JANOWITZER (Rio de Janeiro, RJ)

Anônimo disse...

santiago carrillo solares paracuellos del jarama 1936