2007-06-17

O baixinho de óculos

Esta eu surrupiei do genial blog do Magenco (clique aqui para ler mais).

O BAIXINHO DE ÓCULOS


Tarde de sábado. Quando a criança chegou, o pediatra de plantão logo sentiu que se tratava de uma emergência de verdade. A história clínica, colhida apressadamente, era típica: brincando com grãos de feijão espalhados pelo assoalho da casa, ela tivera um súbito acesso de tosse, "se engasgara, ficara roxinha", e, a partir desse momento, a respiração se tornara cada vez mais difícil. A princípio, a mãe não se assustou...; "devia ser mais uma daquelas crises de asma...; a pequena estava resfriadinha, e ela já estava acostumada"... Aplicou a "bombinha", como sempre fazia, e nada... Aí, começou a ficar preocupada e resolveu correr ao hospital.

O exame físico mostrou que o pulmão direito não estava respirando..., e o esquerdo, com broncospasmo, era o que, mal e mal, sustinha aquele fiapo de vida. Feito às pressas, o RX confirmou a suspeita diagnóstica: corpo estranho no pulmão direito. Devia ser um daqueles grãos de feijão. Impunha-se chamar o otorrino-endoscopista de sobreaviso e o anestesista de plantão, além de mandar preparar imediatamente o centro cirúrgico.

Realizada - com grande risco anestésico - a broncoscopia inadiável, a caprichosa semente foi removida a tempo, e aquele pulmãozinho, de apenas 2 anos, expandiu-se de imediato: a criança estava salva!

Os pais, que aguardavam na ante-sala do centro cirúrgico, foram logo informados, e a mãe, aliviada da tremenda tensão, pôs-se a chorar de alegria, numa copiosa catarse de emoções contidas.

Diálogo pós-operatório:


- Doutor, era feijão mesmo?

- Era, sim, senhora.

- E onde está?

- Aqui, veja! - O médico, ainda paramentado, de avental, gorro e máscara, apresentou o feijão - inchado, mas inteirinho - que se destacava, ainda úmido e brilhante, no centro de um pedaço de gaze.

- Posso ficar com ele?

- Claro! Leve e mostre às suas vizinhas. E diga, a todas elas, que criança pequena não deve ser deixada sozinha, brincando com essas coisinhas miúdas...; é muito perigoso. Como a senhora viu..., sua filhinha quase morreu... - acrescentou.

A recomendação, feita em tom de velada reprimenda, deve ter alcançado seu objetivo, a julgar pelo comentário sincero e contrito que sobreveio, quando ela exclamou, com o fervor habitual das pessoas simples:

- O senhor tem razão. Graças a Deus!...

A eterna vice-liderança:

O doutorzinho, que fora tirado da cama num sábado de tarde, quando digeria profundamente sua tradicional feijoada semanal...; que nunca seria condignamente remunerado pelo trabalho de alta qualidade que acabara de realizar..., resolveu, mais uma vez, assumir humildemente seu eterno anonimato.

No caminho de volta para casa, ao volante do seu modesto Gordini, vinha, entretanto, pensando:

"É engraçado... Quando tudo corre bem, é ‘Graças a Deus’... Eu até não me incomodo de dividir o mérito com Ele..., mas..., e quando corre mal? Aí..., o único culpado sou eu... Será que isso é justo?... E no dia seguinte, ainda estou sujeito a virar manchete de jornal: ERRO MÉDICO MATA CRIANÇA DE 2 ANOS!... Mas deixa pra lá!... Vida de médico é assim mesmo"...

Já em casa..., resignado, pois não era a primeira vez – e sabia que não seria a última – não conseguiu furtar-se ao lamento inconformado:

"Se ela, ao menos, tivesse tido a curiosidade, ou a delicadeza, de perguntar o meu nome..."

Desdobramentos e conseqüências:

Mal desconfiaria ele que, meses depois, repetindo pela centésima vez a mesma história diante de uma visita, ela se surpreendia com uma pergunta que, até então, ninguém lhe havia dirigido:

- Quem foi o médico que salvou a sua filha?

- A senhora há de acreditar que eu não sei? Vou perguntar ao meu marido... Espere só um instante... Juvenal!!!... Oh, Juvenal!!... Vem cá!

Passado um minuto, sacudindo na palma da mão o cachimbo apagado, o Juvenal, alto como um vara-pau, chega à sala, caminhando com passos indolentes:

- Que é? - pergunta, aborrecido.

- Juvenal, Como era mesmo o nome daquele doutor?

- Que doutor, mulher? - replica ele, amuado.

- Aquele que tirou o feijão do peitinho da Joana?

- Ah, não sei..., só me lembro que era um baixinho de óculos...

Sua expressão de perplexidade era visível, quando girou nos calcanhares e, com o mesmo andar pachorrento, voltou a escarrapachar-se na rede estendida à sombra entre duas goiabeiras, onde, acendendo novamente o cachimbo, pôs-se a dar baforadas com o olhar vagando à toa, enquanto, a contragosto, cismava lá com os seus botões:

- Por que diabo ela queria, agora, saber o nome do raio do médico? Que interessa isso?... O importante é que a Joaninha está viva, ora bolas!...

E, aliviado com esta definitiva e admirável dedução, ficou a resmungar coisas sem nexo, como se uma bruma espessa lhe cobrisse a mente, escondendo no nascedouro as idéias fugidias que teimosamente procurava fixar.

Enquanto isso, bem à sua frente, sentadinha no chão, inocente e dando risadinhas, a pequena brincava com os grãos de milho que as galinhas bicavam a seu redor...

E ele olhava, indiferente.

Moral da história:

Se acontecesse tudo de novo, era só levá-la ao hospital...; 'o baixinho de óculos' certamente estaria lá pra quebrar o galho... e, se não estivesse..., ‘outro qualquer estaria’...

Subitamente exausto de tão laboriosas conjeturas, tratou de apagar o cachimbo e, fechando os olhos, inebriado com aquela paz de espírito que é privilégio apenas dos simples que foram bafejados com o dom da certeza absoluta, deixou-se placidamente embalar com o pio da galinhada.

E mergulhou em sono profundo...


Mario Gentil Costa


4 comentários:

Anônimo disse...

CARO ZAPPI, COMO JÁ LHE DISSE EM E-MAIL, VOCÊ ACABA DE ME PRESTAR UMA COMOVENTE HOMENAGEM. AGORA, SIM, VOU VIRAR CELEBRIDADE INTERNACIONAL. E QUEM SABE(?) UM CRÍTICO LITERÁRIO ME DESCOBRE E ERGUE AO ESTRELATO. AFINAL, ESSAS COISAS, ÀS VEZES, ACONTECEM ASSIM. E, NA PIOR DAS HIPÓTESES, MEU NOME ULTRAPASSOU A PONTE HERCÍLIO LUZ. MEUS AMIGOS ILHÉUS JÁ ESTÃO MORRENDO DE INVEJA... GRANDE ABRAÇO. MARIO

Unknown disse...

Zappi,

Quantas vezes passei por esta situação? Não tenho a menor idéia, sei que foram muitas, e exatamente dessa forma. Só que no meu caso, eu ganho a medalha de bronze, e olhe lá (Ouro para Deus, Prata pro "baixinho de óculos" e bronze, quando é lembrado, pro Anestesista - meu caso, hehe)

Não somos hérois, muito menos acho que devemos nos vangloriar por executarmos corretamente nosso arriscado trabalho. Apenas pedimos encarecidamente que não nos condenem tão rapidamente quanto nos esqueçam os agradecimentos...

Excelente post, parabéns a você e ao Mario, vocês deram uma bela revigorada na nossa cambaleante auto-estima...

Abraço
Ielpo

Anônimo disse...

ZAPPI, VIU? OS PITACOS ESTÃO COMEÇANDO A CHEGAR. JÁ ACESSEI O BLOGUE DO IELPO E DEIXEI LÁ MEU AGRADECIMENTO POR SUA HONROSA VISITA. COMO DISSE A ELE, TENHO CARRADAS DE HISTÓRIAS VIVIDAS, ESCRITAS E REGISTRADAS EM MEUS ARQUIVOS. INFELIZMENTE, A MAIORIA NÃO CABE NUMA MERA POSTAGEM E, COMO SOU PROLIXO, TERIA DE PODÁ-LAS AOS LIMITES DE UM BLOGUE. TRABALHO HERCÚLEO, POIS. ESTÃO, QUASE TODAS, EM 4 LIVROS NUNCA EDITADOS, QUE, ORGULHOSAMENTE, OCUPAM ESPAÇO EM MINHAS PRATELEIRAS. UM DIA, QUEM SABE(?) ALGUM EDITOR ME "DESCOBRE". DOIS ABRAÇOS. MARIO

Orlando Tambosi disse...

O nosso Magenco também pinta como ninguém. Vasculhe o blog só pra ver...

Abs.

P.S.: mais um tópico sobre aborto no blog