Voto número dois: O covarde ressentido
Estava em Brasília. O meu vôo sairia em duas horas e eu já estava no aeroporto. Penso que seria um bom momento para almoçar.
Dei uma volta no aeroporto. No último andar, uma praça de alimentação e tristes lojinhas de produtos artesanais brasileiros. "Sob os auspícios do Governo Federal", penso. Triste imagem do grande país que o Brasil deveria ter sido. Primitivos bonequinhos de barro dançando um "Bumba meu boi", doce artesanal de castanha... essas porcarias. Dezenas de lojas assim... É a cultura dos incultos. A defesa do não lucro e do mercado pífio. Tudo para ser engolido pelo aspirante ao monopólio dos empregos, a grande mãe, o Estado absoluto.
Para piorar, o último andar do aeroporto está aberto. As janelas estão abertas, tiras de vidro que não podem ser fechadas e dão de cara para a pista principal. Um barulho do inferno. Pequenos restaurantezinhos por quilo tem as suas tevês sintonizadas na Globo, em altíssimo volume, para garantir o entretenimento dos clientes. Uma horrível e barulhenta praça de alimentação no aeroporto da capital do país.
Decido descer para o restaurante melhorzinho. Um tanto caro, mas nada comparado com os preços da Austrália. É um buffet, self-service.
Self ma non troppo, diria eu. Os garçons trazem os talheres - pergunto-me porque já não estão na mesa - e oferecem as bebidas. Uma cerveja, porque não? Já não tinha nada para fazer nesse dia. O garçom me atende de má vontade, sempre olhando ao redor. O que estaria ele procurando?
Sirvo-me de um buffet bem brasileiro: mandioca frita, mandioquinha refogada com vagens, feijoada, arroz e feijão, arroz carreteiro. Bisteca de porco frita, couve, laranja. Virado de feijão. Frango e "nhóqui", adoro esta grafia.
Fui de feijoada, afinal, mistureba por mistureba esta é mais clássica. Noto que o garçom continua olhando ao redor. O restaurante estava vazio, só havia dois homens conversando em uma mesa distante. Alegremente discursavam, com um forte sotaque nordestino, sobre um lobby, mencionavam nomes e mais nomes. Que pena, penso, se eu estivesse por dentro e fosse um repórter, teria provavelmente feito meu dia. Infelizmente não tinha nem idéia de quem eram os personagens mencionados e desliguei totalmente da conversa.
O garçom, de má vontade, veio perguntar se eu queria outra cerveja. Não obrigado. Volta para seu posto, encostado na parede do restaurante.
Aí entrou um político. Bom, parecia político nordestino: terno branco, cabelo encaracolado, uns 60 anos de idade. Um sotaque tremendo. O garçom se transfigura: todo sorrisos e afagos, vai junto ao ilustre cliente. Interessante... Baixava a cabeça, chegava a humilhar-se. Ria do que o político dizia, fazia claque... bem deprimente. Assim que terminou, voltou, com um resquício de sorriso, ao seu posto. Olhou para mim, eu olhei para ele... o seu rosto tornara-se carrancudo novamente. Não desperdiçou nenhuma oportunidade para bajular o político. Todas as vezes transfigurava-se e voltava ao normal. O político estava adorando, parecia alimentar-se desse servilismo repugnante. Era claro que ele não gostava do político, antes tinha-lhe ódio, mas curvava-se a seu poder...
Quando o político saía, o garçom alcançou-o à porta. Pude ouvir "O senhor sabe, doutor, sobre aquele trabalho..." Claro! Ele estava esperando algo do poderoso político, por isso lambia-lhe as botas. Este deu uma desconversada, dizendo algo como "Vamos ver isso para a semana que vem talvez, eu falo com você." e selou o acordo com um tapinha nas costas.
Novamente voltou o garçom com um resquício de sorriso, um músculo do rosto que teimava em não voltar ao normal... olhou para mim. A conta, pedi.
Ele trouxe a conta, e junto um papelzinho com letras garrafais, em vermelho: "O sindicato dos garçons recomenda uma gorjeta de 10% do valor da refeição." Olhou-me feio. Paguei os 10%.
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