2006-05-30

A montanha mágica

No Havaí existe uma ilha chamada Kona ou Hawaii. É na verdade a maior ilha do arquipélago havaiano. A ilha está no meio do Oceano Pacífico e os ventos são muitíssimo constantes. Por esse motivo, um dos lados da ilha recebe toda a umidade e chove quase todos os dias. O outro lado, no entanto, é como um deserto: a precipitação anual é da ordem de dezenas de milímetros somente.

Essa ilha é como um planeta estranho. Separando um lado da ilha do outro, dois enormes vulcões, Mauna Kea e Mauna Loa. Mauna Kea está extinto, mas houve uma erupção terrível no Mauna Loa lá por 1930 que criou uma série de praias de pedra, onde hoje foram construídos hotéis. Mauna Loa teve uma erupção em 1984, que não afetou esta costa, mas as chances de outra acontecer não são desprezíveis.

Os resultados das erupções do Mauna Loa são campos gigantescos de lava negra solidificada. Esta lava parece como se alguém tivesse passado um trator em extensões imensas e nunca plantado nada. Quando nos aproximamos vemos que é composto de pedras. Andar aí é penoso, quase impossível. O sol aquece a lava preta e os pés não tem onde se firmar, é como andar em pedras irregulares, soltas. Muita gente torce ou quebra o pé tentando. Essa lava é chamada pelos nativos apropriadamente de 'a'a (clique para ver). Alguns dizem que o nome se originou nos sons provocados pelo esforço de andar nesse tipo de lava. Como não chove quase nunca, não se forma solo e não cresce nada ali. É efetivamente um deserto.

É muito difícil ter uma idéia de quão monstruoso é esse vulcão. Estando lá percebe-se apenas o que parece um monte à distância. A transparência do ar no Havaí nos engana: o cume está a mais de 40 kilômetros da costa onde estamos.

A lava do Mauna Loa é extremamente fluida, o que faz com que a inclinação da montanha seja muito baixa. O aspecto é enganoso: Mauna Loa tem mais de 4100 metros de altura. Na verdade, contando a sua base como sendo embaixo do mar, o Mauna Loa é a maior montanha do planeta, com mais de 9000 metros de altura. Com certeza é o maior vulcão. Medir a montanha desta maneira pode parecer estranho, mas o fato é que o vulcão se formou a partir do fundo do mar, metro por metro, através de suas erupções, até atingir este tamanho incrível.

No proximo post vou contar como foi subir no Mauna Kea, vulcão extinto mas ainda mais alto que o Mauna Loa.

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2006-05-29

A montanha mágica 2


A temperatura era de deliciosos 27 graus, a umidade baixa. A praia, onde pela manhã uma gigantesca tartaruga tinha passado, já parecia cansada do dia e preparava-se para o pôr-do-sol que eu sabia que não veria.

Não veria na praia, bem entendido. Eu estava inscrito em um passeio que sairia às quatro da tarde para subir no Mauna Kea, um vulcão extinto. A altitude do pico é de 4200 metros, bastante mais alto que o ponto mais alto do Brasil, que não chega a 3000 metros. Voltaríamos lá pela meia-noite, depois de passar um tempo olhando para as estrelas, em um céu que está entre os mais límpidos do mundo.

A ilha grande do Havaí (Hawai'i) é muito diferente de tudo que eu esperava do lugar. É mais fantástico, colorido e surpreendente. Os havaianos são muito gentis e doces. Sumamente atenciosos, mas não de forma artificial e falsa. Na Bahia, por exemplo, os turistas na rua são literalmente atacados por todos os lados, com o intuito de extrair o máximo possível de dólares. No Havaí, os turistas são tratados. E muito bem tratados, por sinal. Há uma agradável semelhança, entretanto: é tremendamente claro que os havaianos gostam de crianças, da mesma forma que os baianos.

Quando chegamos ao lugar, um hotel chamado "Mauna Lani" minhas filhas e minha mulher me olharam: "Tem certeza que é aqui?". O lugar era tão bonito, impecavelmente decorado e luxuoso que pensaram que eu tinha me enganado. Isso sem contar as atenções delicadas dos funcionários do hotel. Não era possível que ficássemos uma semana num lugar como esse! Parecia reservado para príncipes, e não para simples plebeus como nós...

No piso inferior do hotel, canais de água salgada com peixes incrivelmente coloridos serviam de decoração viva. Todas as manhãs tomávamos café no salão principal, mas realmente não podíamos chamar aquilo de café. Era um banquete. Dentro do hotel, pássaros coloridos, vermelhos, azuis, todas as cores entravam em revoada para roubar pedaços de panqueca de nossos pratos. As meninas olhavam, extasiadas, paralisadas. Era óbvio que esses pássaros não se importavam com a presença humana e que não tinham medo nenhum da gente.

O "Mauna Lani" estava em um lugar verde, com suntuosos jardins, mas assim que saíamos do hotel a paisagem convertia-se no campo de lava preta. Eu não conseguia entender... Nesse lugar não chove nunca! É a garantia de férias perfeitas, mas como mantinham toda aquela área imensa verdejante? Era um mistério que eu tinha que desvendar.





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2006-05-28

A montanha mágica 3



Como eu já expliquei, nesta ilha chove o tempo todo de um lado e praticamente nunca do outro. O hotel em que estávamos estava no lado seco e mesmo assim tinha bonitos e cuidados jardins. Isto sem contar que o hotel precisava de água para funcionar, óbviamente.

Andando pela costa, percebi que os hotéis pareciam oasis em meio à pedra negra. Entrando no mar, tudo mudava. Mergulhando a alguns metros além da praia muitíssimos corais abrigavam peixes impossíveis de tão coloridos. Acho que nunca em minha vida vi tamanha variação de azuis, violetas, vermelhos e amarelos, além de padrões absurdos com círculos brancos e castanhos. A vida pululava pelos recifes e pelos corais manifestando-se em cores incríveis. Os raios do sol destacavam ainda mais as maravilhas e a transparência das águas fazia pensar que estávamos flutuando no espaço. O contraste com o aspecto desolado da costa negra era estarrecedor.

As tartarugas marinhas imensas vinham perto das pessoas, um comportamento muito raro: era comum vê-las na praia com crianças ao redor. Os havaianos haviam instituído uma lei que proibia que as tocássemos, com medo que elas se assustassem e deixassem de se aproximar das pessoas. Era difícil impedir as crianças, no entanto...

Notei que quando entrava na água para mergulhar, inicialmente havia uma estranha turbidez, uma turbulência esquisita na água. Isso não tinha nada de normal, penso, e pergunto a alguns locais. Eles me explicam que na verdade, por baixo da linha da praia, fendas na pedra exalam água doce que vem de lençóis freáticos que passam por baixo do Mauna Kea. A lava é extremamente porosa e filtra a água que vem literalmente do outro lado da ilha. Havia uma teoria de que as tartarugas se aproximavam da costa para beber dessa água doce. Fazia sentido. O que me parecia mais fantástico é que no meio desse deserto, bastava fazer um poço de uns dez metros de profundidade e agua pura e cristalina brotava. Essa água era usada pelos hotéis, que tinham trazido terra do outro lado da ilha para plantar seus jardins. Tudo estava explicado. A delicada distorção que eu via ao mergulhar era a camada de água doce, que flutua sobre a água salgada, misturando-se com a minha presença. Fantástico!

Veja aqui (clique) como os campos negros de lava chegam diretamente ao mar. Se tiver Google Earth, pode-se ver com mais clareza o local e inclusive ter uma idéia do tamanho dos vulcões.

A montanha mágica - 4



Divaguei um pouco... Como dizia, a temperatura era de maravilhosos 27 graus e vieram me buscar para subir no Mauna Kea, vulcão imenso com 4200 metros de altura. O motorista do jipão estava recolhendo turistas pelos hotéis e falou brevemente comigo. Nesse momento disse: "Você vai se sentar aqui, do meu lado." Eu, intrigado, disse que tudo bem. Até gostei de sentar na frente.

Após recolher todos os passageiros rumamos em direção ao Mauna Kea. Para quem não sabe, este vulcão reúne a maior coleção de observatórios astronômicos high tech do mundo inteiro. A limpidez do céu havaiano só encontra paralelo em alguns altos picos do Chile. A razão é que toda as nuvens ficam concentradas do lado chuvoso da ilha e não conseguem passar por sobre o pico dos vulcões.

Fiquei impressionado com o caminho retilíneo. Esperava que, ao subir a montanha, começasse um percurso sinuoso, mas não. O guia/motorista explica tudo: este vulcão foi escolhido justamente pela facilidade de levar equipamento pesado para o topo, sem correr o risco de submeter os delicados espelhos refletores a perigosas estradas. Lembro que espelhos de grandes telescópios refletores podem ter mais de 8 metros de diâmetro, e tem que ser transportados de uma vez, não há como desmontar. A suave inclinação do vulcão permitia fazer com que a estrada fosse larga e diretamente ao topo.

Da mesma maneira, impressionei-me porque não se notava que estávamos subindo tão alto. Quando olhávamos para trás, víamos só um campo de lava que era negra se fosse recente ou marrom se tivesse mais de três séculos. À medida que fomos subindo o guia explicava as formações rochosas. Os "cinder cones" remanescentes de antigas erupções eram sumamente interessantes. Acrescentavam à paisagem esse aspecto lunar ou espacial.

Antes do passeio, o guia perguntou se tínhamos mergulhado nas últimas 8 horas. Se tivéssemos, não nos deixaria prosseguir. Crianças de até 12 anos também não podiam ir. O guia explicava que em pouquíssimos lugares do mundo era possível subir do nível do mar até 4000 metros tão rapidamente, e que em alguns casos havia reações adversas, como formação de líquido nos pulmões. Era a temida "embolia de altitude". Paramos por uma hora quando chegamos perto dos 3000 metros para garantir que não haveria problemas durante a subida até o cume.




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A montanha mágica - 5


Depois da pausa, continuamos a subir. Agora o caminho era mais íngreme. O guia explica que o jipe não teria como chegar ao topo se não fosse dotado de um turbocompressor: o ar já é rarefeito demais para o motor nessa altitude.

Estávamos no topo. A paisagem era realmente extra-terrestre, ainda mais com os lindos observatórios high tech iluminados pelos últimos raios de sol da tarde. Era um lugar verdadeiramente maravilhoso. De acordo com o guia, os nativos consideravam essa montanha sagrada e tinham feito um acordo para permitir a instalação dos observatórios.

Chegamos a tempo de ver o por-do-sol e havia lá embaixo um mar permanente de nuvens do lado úmido da ilha. O sol ja se punha, as nuvens mudavam de cor. O que era mais impactante no entanto era a sinistra e monstruosa sombra do vulcão, um cone de escuridão nas nuvens e na nevoa, uma noite precoce para quem vivesse no rastro do Mauna Kea.

Chocava a temperatura: zero graus. O ar rarefeito tambem se fazia sentir, eu estava um pouquinho zonzo, como se tivesse tomado umas cervejas. O guia, que ja tinha feito esse passeio centenas de vezes, distribuía sopa quente e casacos para todos. "No inverno ha sempre uma camada de neve mas nesta época apenas faz um pouco de frio" explica. "Os observatórios de diversos países estao localizados aqui: este é japonês, aquele francês e este pertence à Universidade da California.

Por causa da localização no meio do Oceano Pacífico as observações em luz visível são soberbas, mas a umidade que ainda existe nesta altitude prejudica muitas vezes as observaçoes no espectro infravermelho. Para esta faixa do espectro os observatórios no deserto de Atacama no Chile contam com uma transparência superior da atmosfera." Ouvia a sua voz, mas era como se ele estivesse longe... eu não podia parar de olhar o fantástico por do sol naquele lugar surrealista.

Anoitecia e o nosso guia comentou que apesar do céu ser incrivelmente brilhante nesta altitude, o olho humano não funciona bem: a falta de oxigênio diminui espetacularmente a sensibilidade visual da retina. Por esse motivo desceríamos mil metros para começar a olhar para o céu. Ficamos contentes: todos estávamos começando a tiritar de frio. Voltamos para o jipão. O guia comentou que ninguém fica nos observatórios durante a noite. Na realidade uma lanterna de mão acesa é capaz de distorcer ou mesmo arruinar observações delicadas. Os observatórios funcionavam sozinhos, como fantasmagóricas máquinas silenciosas na escuridão total e no frio, manejadas à distância a partir de confortáveis salas de controle na universidade do Havaí, à beira do oceano.





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2006-05-27

A montanha mágica - final


Anoitecia, finalmente. Em nosso novo ponto de observação, a uns 3000 metros de altitude, o guia estava preparando o equipamento. Um telescópio refletor. Entre os presentes eu era o mais entusiasmado e o guia tinha percebido de início. Quando conversávamos, ele notava que as minhas perguntas eram de alguém interessado no assunto. Olhávamos para o céu, que demorava em escurecer. "Infelizmente os planetas não estarão visíveis durante a primeira metade da noite" - disse o guia, em tom triste. Eu não me importava. Passei a maior parte da minha infância olhando planetas no telescópio do terraço do apartamento onde eu morava em São Paulo, e sabia muito bem o que esperar desse tipo de observação. Não, eu estava interessado em ver aquilo que só podia ser visto em um céu límpido como esse: distantes galáxias, nebulosas do hemisfério norte, para sempre proibidas desde meu antigo ponto de observação sul-tropical.

Antes que anoitecesse era entretanto o momento mais favorável para ver os "flares", ou seja, disparos de brilho ocasionados pela reflexão de superfícies lisas de satélites artificiais. Os mais intensos e comuns eram os do sistema "Iridium" da Motorola, uma rede de satélites para telefonia global que nunca chegou a funcionar a contento. Apesar disso proporcionavam diversão a estes caçadores de "flares". Vimos diversos, alguns bastante impressionantes, sempre previstos pelo guia que tinha trazido uma tabelinha com os mais notáveis dessa tarde. O céu parecia custar a escurecer. Uma língua de luz persistia, teimosa. O céu transparente parecia estar mais próximo do que nunca. Vimos alguns meteoritos e começamos a observar objetos coloridos, estrelas duplas (alpha-cygni) a nebulosa de lyra e diversas outras nebulosas e galáxias, incluindo "Sombrero". Nunca veríamos estes objetos com o brilho e resolução de um grande telescópio, mas para mim vê-los diretamente tinha muito valor.

Vimos dezenas de objetos e conversamos bastante. À medida que a nossa visão ia se acostumando com a luz das estrelas, percebi que não era possível distinguir as faces das pessoas. Era cômico, parecia que enxergávamos bem, mas o baixo nível de luz das estrelas dispara células da retina que não tem a capacidade de resolver detalhes. Cor também era inexistente, tudo parecia meio azulado. O guia riu e contou que uma vez um dos turistas que levava deu uma palmada em alguém pensando que era a sua esposa... Duas turistas japonesas não paravam de rir com a história.

Na volta percebi por que o guia tinha me escolhido para sentar na frente do jipão. Todos estavam cansados e sonolentos e ele ainda teria que dirigir por pelo menos uma hora. Tinha me identificado como um falador entusiasmado e ficamos conversando sobre diversos assuntos. Engraçado... queria saber sobre o Brasil. Ele também me contou sobre os imigrantes japoneses no Havaí, sobre comunidades alternativas... Fiquei pensando como tudo isto convivia tão bem em uma ilha do Pacífico, como os investimentos científicos prosperavam, as pesquisas iam de vento em popa. Pensei nos silenciosos observatórios-robô no topo do Mauna Kea. Pensei em como tudo isso estava distante do meu país... como lá saber e conhecimento eram tratados como... bom, deixa prá la.

2006-05-26

Amanhã vai ser outro dia.

Como disse aqui, o que acontece no Brasil já vem de longa data. O ataque aos seres pensantes executado pelos esquerdistas brasileiros se baseia em uma compaixão cristã, católica mesmo. Coitadinhos dos oprimidos! Baseando-se nesta lógica, ninguém na prisão tem culpa de estar preso, nenhum assassino tem culpa de matar, nenhum adúltero tem culpa de ter traído. Não: tudo isto foi causado por algo externo, injusto, do sistema. Os assassinos matam porque, nesta lógica tergiversada, são pobres, não tem o que comer, e matam para poder alimentar seus filhos.

Em outra versão, igualmente estúpida, os assassinos matam porque não tiveram oportunidade de ir à escola e aprender que matar é errado. Propagadores desta visão imbecilizante encontram-se na USP, Folha de São Paulo e grandes setores da imprensa. Gilberto Dimenstein, Clovis Rossi e Carlos Heitor Cony são típicos representantes da divulgação desta mentalidade torcida. Cony parece-me o pior deles, em tudo o que diz está inserida a veia totalitária marxista. Vejam este artigo por exemplo, e digam se o cara não está defendendo a censura, estilo ditadura. A estratégia básica se refere a cooptar a parte boa das pessoas, convencendo-as de que algo vago, chamado "o sistema" ou "as elites" são a causa dos problemas da sociedade. Baseado nessa lógica roubo sistemático das instituições é denominado temporariamente "erro". Assassinato é erro, qualquer subversão é erro.

Sustento que os esquerdistas brasileiros sequestraram (aqui) a parte boa das pessoas, re-definindo o que é bom e o que é mau.

A Folha é a mais perniciosa: com uma política oficialmente denominada de "ouvir o outro lado" consideram Marcola, por exemplo, digno de ser ouvido. Em nenhum lugar aparece a lista de crimes cometidos por esse desgraçado. Em nenhum lugar aparecem os crimes cometidos por José Dirceu, por exemplo, o anistiado. Marcola e Dirceu, assim como Lula e Berzoini, Delúbio e Okamotto, todos integram uma gigantesca quadrilha.

Esperem... Isso depende do ponto de vista, não? Vamos ouvir o outro lado. O que o Marcola tem a dizer a respeito? Por que o Dirceu negocia a venda da Varig? Por que todo o funcionalismo público está tomado por petistas?

O que o PT está fazendo agora, encabeçado pelo Lula, é re-definir o que é certo e o que errado. Estão conseguindo.


Continua...



2006-05-25

Amanhã vai ser outro dia - 2

Durante os problemas em São Paulo, vi uma reportagem da BBC na TV. Falava algum funcionário de uma ONG, dizendo que inicialmente o objetivo deles era melhorar as condições dos presídios no Brasil, mas que os presos se aproveitaram disso para usá-los para aperfeiçoar técnicas criminosas. Foi a única reportagem lúcida sobre o assunto a que assisti. Pena que durou uns poucos segundos.

De onde saiu o Marcola? Vejam aqui quem realmente é esse cara e o que ele faz da vida.

Uma vez uma professora do Instituto de Matemática da USP, de nome Lucília, perguntou o que eu fazia para viver. "Tenho uma microempresa." - respondo. Nesse momento ela, agressiva, começou a insinuar que os "empresários" como eu é que tinham a culpa dos problemas do Brasil. Naquela época, mais de dez anos atrás, fiquei atônito: como podia ela dizer isso? Em que eu tinha mais culpa do que ela, uma professora de matemática petista?

Imagino o que ela deve estar pensando agora. Talvez que o Marcola é um grande líder e deveria ser anistiado, como José Dirceu.



Continua...

2006-05-24

Amanhã vai ser outro dia - 3

Na Australia houve um problema similar ao do PCC. Um grupo de islâmicos fundamentalistas estava incitando fiéis a atacar lugares famosos da Australia.

Imediatamente o primeiro ministro aprovou novas leis no parlamento. A mensagem passada por ele foi: se você quiser vir morar na Austrália, tem que aceitar os valores australianos. Esses 'valores' citados são o razoável: aceitar as leis locais, os direitos básicos.

A Austrália é um país muito mais 'socialista' que o Brasil. Apesar de a organização geral ser obviamente capitalista, há muitos programas sociais para ajudar gente com problemas de saúde por exemplo. Eles chegavam ao cúmulo de dar um rendimento anual a mães solteiras, até o filho completar seus estudos.

O que o governo australiano não tolera é o crime. E como no caso dos terroristas suicidas não há o elemento perpetrador para aplicar uma pena, as leis foram mudadas para poder enquadrar quem incita violência. O terrorista que se explode foi doutrinado por alguém, e as novas leis foram pensadas para poder pegar estes pregadores.

No Brasil, ocorreram os eventos do PCC, que foram muito piores do que os atentados terroristas ao metro londrino. Entretanto, o Presidente sorri, diz que nada tem a ver com isso, a culpa é das elites. Nem seria necessário alterar muito as leis, bastaria retirar absurdas concessões a criminosos.

Bastaria fazer com que leis fossem cumpridas com presteza. Fazer com que criminosos fossem presos de verdade. Hoje ocorrem no Brasil pelo menos 100 casos de extorsão por dia que são realizados a partir de celulares de dentro dos presídios e contam com uma "equipe" organizada de bandidos soltos. Nada é feito, o presidente sorri. Os policiais são executados, e o presidente continua a sorrir.

O presidente não parece interessado em que as leis sejam cumpridas. Afinal de que lado ele está?

2006-05-23

Notícias do jornal

Em Brasília há discussões se é ou não possível usar a máquina de xerox para fazer cópias de processos e permitir mais de uma pessoa ler os autos. A lei é clara: nada de xerox. O resultado também: processos contra ladrões do PT demorarão décadas para chegar a uma conclusão.

Enquanto isso, na Inglaterra, pousa pela primeira vez o mega-jumbo A380, cujo desenvolvimento consumiu US$12 bilhões e foi feito pelo consórcio europeu Airbus. Acredita-se que com a explosão de demanda de transporte de passageiros e carga na Ásia, particularmente na Índia e China, o A380 proporcionaria a solução ideal, potencialmente duplicando a capacidade de aeroportos, por transportar mais de mil passageiros de uma vez. O crescimento econômico sem precedentes da Asia está transferindo o centro de gravidade econômico do mundo para essa região.

Ainda na indústria aeroespacial, a Embraer desenvolve novos jatos. O conteúdo de peças importadas destas aeronaves é de 98%, portanto quase nenhum insumo é feito no Brasil. Até os parafusos são importados. Para piorar a situação, quando a Embraer vende uma aeronave para uma empresa brasileira, a venda tem que ser feita através de um banco no exterior, de preferência em um paraíso fiscal, pois as taxas de juros escorchantes do mercado nacional impedem totalmente as transações de leasing em moeda nacional.

Após rebelião em São Paulo todos os jornais estão preocupadíssimos com a situação de perigosos bandidos. Uma boa parte das notícias ocupa-se de verificar se estes assassinos condenados terão ou não televisão para assistir a copa do mundo e se o direito de visitas íntimas, garantido pela Constituição Federal, vai ser mantido. A Folha de São Paulo está especialmente interessante: a manchete menciona que uma Lei Federal aprovada exige que os presos trabalhem e esse direito está lhes sendo negado. Interessante: em um país cujo desemprego é de 20% e o restante está sub-empregado, os presos, assassinos condenados, terroristas e estupradores, têm direitos que o cidadão comum não tem e a Folha grita insistentemente para defendê-los. Em outros países os presos têm o direito de ficar presos, incomunicáveis, até o fim de suas penas. Lá eles não vão arruinar um país inteiro com táticas terroristas.

Enquanto isso a China anuncia que investirá 110 bilhões de dólares em pesquisas para inovação tecnológica e que em 2030 60% do crescimento do PIB será devido a novas tecnologias, desenvolvidas localmente. Hoje a China cresce por aumento de produtividade, transferindo mão de obra do campo para atividades industriais. Todos sabem que esse negócio de enxada não tem futuro. Agribusiness é feito com automação e tecnologia. A China percebe, justamente pelo fato de os seus dirigentes serem esclarecidos, que não há como continuar crescendo se não começar a gerar tecnologia de maneira autônoma.

No Brasil, um grupo organizado de "trabalhadores rurais" destrói instalações de pesquisa para melhora de eucalipto. Interessante notar que estes "trabalhadores rurais" têm como meta oficial dividir terras e lavrá-las com enxadas. As metas não oficiais são impublicáveis. Notem que a China, muito mais pobre que o Brasil, tira gente do campo e cresce.

Queria lembrar também que quando um assassino é condenado na China, ele é fuzilado. Em um bonito gesto simbólico, o governo faz com que a família do assassino pague o preço da bala usada para a execução. Para quem não entendeu, o governo está mandando uma mensagem: "este cara não valia nada."

Não vou comentar as notícias sobre o roubo organizado do estado promovido pelo Partido dos Trambiqueiros, nem a rede de subornos que eles instituíram, porque essas notícias não saem nos jornais no estrangeiro. Aliás, uma interessante constatação: apesar de que todo o mundo deveria estar morrendo de rir do Brasil neste momento pela inacreditável incompetência em lidar com todos os assuntos, desde justiça até exército, desde governo federal até municipal, investimento e impostos, condições sociais e de emprego, apesar de toda esta inacreditável malha de burrice que cobre o país, ninguém ri.

Ninguem ri, e não é por solidariedade. Não vêm a seriedade da situação. Não se compadecem do Brasil. Ninguem ri porque ninguém se interessa. O Brasil não sai no jornal. O Brasil já é considerado por todos um país atrasado, incivilizado, incurável. O Brasil é saudado com silêncio.


2006-05-21

Ao Loiro de Angola

Quando estavas à toa na vida não te repreendi. E foi por que cantavas coisas de amor. Quando disseste para deixar a menina sambar em paz, compreendi. Direito de opção. Notaste que a coisa aqui estava preta e só pude concordar. Quanta visão!

Estranho foi quando chamaste o ladrão...

Mas a escura viatura rimava com ditadura. Dei-te razão. Afinal, alguém inventou um Estado sem perdão. Tiveste coragem, por que não?

Mas o malandro, o que tem de mais? Preferes o de navalha ou o regular, o cadáver indigente ou a rainha dos detentos?

Verdade que vi sensibilidade quando pensaste em tua gente. Mas sentiste ou viste de cima, impunemente? Como a moça distraída, sem saber o que ocorria, e dormia transparente? Poesia tiveste, mas agora, falando sério...

Pensei que eras sincero, qual o quê. Já não te conheço mais. Queres fazer um silêncio doente? Qual o quê. Preferias não falar? Choras de rir por me trair?

Será que agora que nasceu teu rebento, traz sempre um presente pra te encabular?
Não entendes essa gente, fazendo alvoroço demais? Parece que teu guri continua rindo, rindo...

Estou desempregado, estás mais velho. Tua memória é fogo! Eras predestinado a estar errado assim? Não pra cima de mim!

Acreditas que é outro país. Parece que decoras o teu papel. E não andas com os pés no chão. Se um dia despencares do céu... não te preocupes, não exijo bis.

Não beberei dessa bebida amarga. Tanta mentira, tanta força bruta. Não queria que fosses filho da outra. Preferia ouvir teu grito. Medonho.


2006-05-19

Ah, é minha a culpa?

Agora querem me culpar. Porque nasci. Porque estudei. Porque trabalhei.

É minha a culpa?

Nasci quando começava o regime militar brasileiro. Como há de ser minha culpa?

Trabalhei, estudei, paguei impostos, empreguei. Deve ser minha a culpa de que milhões de miseráveis nascem todos os anos. Claro, deve ser minha a culpa. Não de quem os gera. Não.

Também ensinei. Ajudei o Brasil a melhorar ensinando, dando condições para que gente que não tinha nem pai nem berço pudesse progredir. Claro, há de ser minha a culpa.

É minha a culpa?

De que um cara perdeu um dedo no torno. E ficou furioso com um patrão que não era eu. Será dele a culpa? De quem é a culpa se ele não sabia usar o torno direito? Do patrão ou de sua própria burrice?

É minha a culpa?

De nenhum bandido ser preso? Do PT promover a maior roubalheira da história nacional? Nem votei neles (ufa... não preciso carregar esta culpa). De que queimem ônibus na rua. É minha a culpa? Não será de quem rouba e de quem queima? Não, isso são erros. Ninguém tem culpa de erros. Errar é humano.

É minha a culpa?

Que alguém ficou grávida e abandonou seu filho. Ha de ser minha a culpa então. Como eu podia ser tão insensível e não estar lá para salvar a criança? Sim, talvez seja minha esta culpa... Não será da mãe? Ou do pai? Não, destes são apenas erros. Todo mundo pode errar.

Que a favela cresceu. Que os bandidos sequestram. Que fico preso em casa... sim disto é minha a culpa. Culpa de não ter coragem de sair à rua. Medo de ser assaltado. De ter medo de gritar?

É minha a culpa. De que não há justiça e não reclamo. De ser roubado e não gritar. É minha a culpa de não agüentar mais e ir embora.

Assumo, é minha a culpa. De querer que meus filhos vivam em um lugar decente, um lugar justo onde cada um assuma suas culpas e pague por isso. Que os ladrões fiquem presos. Que os assassinos não vejam a luz do dia. Que os destruidores se calem. E paguem. Paguem por suas culpas. Pelas culpas que não assumem.




2006-05-09

Wagga-Wagga

Sempre lhe acontecia a mesma coisa. Cada vez que Fernando resolvia confiar em algum brasileiro que encontrava, acabava ficando com razões de sobra de se arrepender. Tinha acontecido em situações diversas, com assuntos de pequena importância. Uma vez foi a daquela carioca que o convenceu a pedir o prato mais caro no restaurante. Ela mesma tinha pedido, só pelo preço... afinal a companhia aérea reembolsaria. Como nenhum dos dois entendeu o menu, não dava para saber que estavam pedindo camarões gigantes com molho de anis e creme. Parecia camarão com pasta de dentes.

Ela sabia, entretanto. Sabia que tinha detestado. Como tinha se ferrado, a única maneira que enxergava para tirar a forra era passando adiante... e encontrou um idiota, ali mesmo, que falava português. O que faz as pessoas procederem desta maneira? Que tipo de solidariedade invertida era essa?

No Brasil isso se chama "espírito de porco". É visto como uma brincadeira que rende boas risadas depois: "Aí apareceram aqueles trouxas e eu os convenci a pedir a mesma caca... Ha ha ha!" Faz parte da síndrome do esperto crônico: afundei, mas me sinto melhor se conseguir arrastar alguém para o fundo comigo.

Fernando sempre acabava pensando que não tinha importância, afinal. Era só um prato em um restaurante, qual o problema? Ele via também uma certa graça em sua própria natureza crédula.

Desta vez era diferente, entretanto. A situação era muito mais séria. Era a diferença entre conseguir se estabelecer com família e tudo em um país novo, ou ter que voltar para casa, com o rabo entre as pernas.

Fernando queria se mudar para a Austrália. Lá por acaso encontrou um rapaz que tinha estudado na mesma faculdade, no Brasil, vejam só que coisa boa! Conversando, o rapaz, que vou chamar de Jorge, para não dar nomes aos bois, lhe disse:

"Imigrar é muito fácil: basta esperar até o fim do curso e dar entrada nos papéis deste jeito aqui e pronto! Eu já consegui, não tem nenhum problema. Vai ser fácil para você também. Ainda mais que somos da mesma faculdade, he he he, vai ser baba!"

Fernando relaxou um pouco. Afinal não precisava fazer nada até que se terminasse o curso. Isso era bom, poderia concentrar-se em estudar somente. Os meses passavam rápido e um dia, conversando com um argentino, amigo de Jorge, comentou como iria conseguir os papéis de residência.

"Ele te disse o quê?!?!?!" - perguntou o argentino, indignado. - "Isso é um absurdo! Jorge não conseguiu a residência por que não aplicou a tempo e você vai pelo mesmo caminho!"

O argentino explicou para o Fernando qual era o procedimento mais adequado e contou em detalhes qual a verdadeira situação de Jorge. Não havia dúvidas, Jorge havia mentido descaradamente e sem motivo aparente. A única conseqüência que a mentira de Jorge teria era a de dificultar ou até mesmo impedir Fernando de conseguir residência. Nisso é que dá confiar em brasileiros... Jorge entretanto poderia ter sido mais decente, afinal tinha cursado a mesma faculdade de Fernando. Isso não tinha nenhum valor para ele?

Subitamente Fernando encontrou-se em uma situação difícil. Tinha menos de um mês para dar entrada em todos os papéis. Certificados, exames, traduções, tudo ao mesmo tempo. Quando checava o que era necessário, descobriu que teria que fazer mais um teste de Inglês. Apesar de ter um certificado equivalente, o governo Australiano exigia outro teste.

Faltavam 15 dias para o prazo fatídico. Em toda a cidade, as salas de exame estavam cheias. Não poderia fazer o teste e não poderia dar entrada nos papéis no prazo correto... "Maldita burocracia..." pensou "... teria entretanto dado tempo se o Jorge não tivesse contado aquela balela, que raiva."

Começou a ligar para todos os lugares da Austrália onde o teste era oferecido. Os Australianos adoram secretárias eletrônicas, e Fernando ia deixando recados em todas elas. Alguém vai me responder. À medida que as respostas chegavam, mais decepção: não havia vagas disponíveis, tente em outro lugar. Continuou assim até o momento em que recebeu uma misteriosa ligação de Wagga-Wagga. Em seu desespero Fernando ia começar a ligar para centros Internacionais, Singapura, Fiji, não interessava aonde. Já não estava esperando que respondessem de Wagga, afinal que droga de lugar era aquele? A moça foi muito gentil, explicou que tinha vagas para um exame que ocorreria na semana seguinte. Fernando perguntou se ela podia acelerar a entrega dos resultados, e ela disse que não haveria problemas. Mandou um mail com dados de como chegar em Wagga, hotéis, trens, tudo o que Fernando precisaria. Ela tornou a ligar para ter certeza que Fernando tinha recebido tudo direitinho. "Então nos vemos em Wagga" - disse, alegremente.

Continua....





2006-05-08

Wagga-Wagga - continuação

Fernando embarcou para Wagga em um voo noturno. Não haveria mais tempo de ir de trem e a prova seria às 8 da manhã do dia seguinte. Às vezes acontecem situações como esta: não haveria segunda chance, era tudo ou nada... tudo tinha que dar certo desta vez.

Essa cidade não era assim tão longe, o voo durava uma hora. Na sala de embarque olhou ao redor: estava muito curioso sobre quem em sã consciência iria para um lugar com esse nome... Notou especialmente um homem, meio gordo, que cumprimentava todo mundo. Na certa devia ser um político. Olhou para Fernando, que sorriu de volta. Há políticos que estão interessados em Wagga-Wagga, pensou. Talvez não fosse um lugar tão ruim assim, afinal. Pensou brevemente em José Sarney e seu súbito e inexplicável interesse no Amapá... não, não podia ser a mesma coisa. Nada se parecia com o Brasil por aqui.

O avião parecia ser da Embraer, mas estava forrado com uma espécie de carpete imitação de vaca holandesa... e os assentos eram peludos. Que espécie de empresa era esta? "Outback airlines"? Todos sentavam organizadamente em seus assentos, não parecendo perceber nada estranho na decoração do avião-vaca. Fernando tentava fazer como os demais. Notava entretanto que o político continuava olhando para ele. Fernando respondeu com um sorriso amarelo e olhou para o outro lado.

A aeromoça se aproxima e perguntou, gentil: "Vai precisar de taxi em Wagga?" Fernando respondeu que sim, um pouco intrigado. Ela pediu seu nome e explicou que um taxi iria estar esperando por ele no aeroporto. Ao descer no pequeno aeroporto, percebeu que efetivamente havia um taxi esperando por ele. "Como Wagga é organizada" pensa, divertido. Não teve como ver a cidade, tudo estava escuro. O hotel que havia escolhido encontrava-se na metade do caminho entre o aeroporto e a cidade, em uma área aparentemente rural. A noite estava fria e estrelada, Fernando passou um tempo olhando o céu antes de entrar no quarto.

No dia seguinte, estava pronto para ir bem cedo para a prova de inglês. Tomou um ótimo café da manhã no hotel e conversou com a moça que servia o café. Ela explicou que quase sempre fazia frio de manhã em Wagga, mas hoje o tempo estava bom. "Como sabe? " pergunta Fernando. Ela aponta para um campo, pela janela e diz: "Está vendo, esse gramado? Quando faz realmente frio ele fica bem branquinho. Nunca neva, entretanto." Fernando olhou para o gramado que estava um pouco esbranquiçado. Depois do café foi dar um passeio por lá. O ar fresco a zero graus estava delicioso. A geada começava a derreter sob seus pés. Decidiu que estava pronto para a prova.

O taxi o deixou em um prédio do campus da universidade de Wagga. Não havia ninguém, ele tinha chegado mais de uma hora antes do horário do teste. Decidiu passear pelo campus. O sol nascia e iluminava uma floresta de eucaliptos com sua luz amarelada. Os troncos e a terra pareciam ter o mesma cor, e, de repente, nota que do ambiente monocromático um canguru o espreita. Amarelo, o canguru também. Pensou que os cangurus tinham essa cor para se confundir com a terra e com o ambiente. "Esses cangurus estão aqui há milhões de anos, eu acabo de chegar" pensou, achando divertido o contraste. Olhou para si mesmo, estava vestido de preto. O canguru não parecia muito preocupado, olhava como se estivesse curioso, como se estivesse pensando sobre quem era aquele estranho que ele nunca havia visto antes.

Já era hora do teste, voltou ao prédio, que já estava aberto. A moça com que tinha falado ao telefone no dia anterior já estava lá, esperando: "Você é o Fernando, não é mesmo?" O teste começaria em meia hora, conversou um pouco e disse: "Já agendei o seu teste oral para a 1:00, de modo que você não vai perder o ônibus nem o trem". Quanta eficiência... Fernando notou a atitude em Wagga era diferente da dos grandes centros. Aqui eles tinham receio que, se não houvesse procura pelo teste, ninguém viria nunca e todos perderiam o emprego. Depois de identificá-lo, pediu para que esperasse em uma sala.

Ficou sozinho por alguns instantes e pensou, divertido, que era o único que tinha se inscrito para fazer a prova em meses... Até que começaram a aparecer os outros. Um, dois, cinco, sete negros se sentaram ao redor de Fernando, que olhava, um tanto intrigado. Aí começaram a chegar negras, muito escuras, com certeza de algum lugar da Africa. O silêncio era geral, e todos olhavam para Fernando. Fernando não sabia bem o que fazer, até que o maior de todos, um negro com quase dois metros de altura se aproxima, olhando-o no rosto e com ar muito sério e um vozeirão grosso, diz:

"Velcom tzu Tzimbabve!"

Ele abre um sorriso luminoso e Fernando relaxa, rindo com a piada. Eram todos de Zimbabwe e começaram a conversar sobre o país deles. Fernando explicou que era brasileiro. Eles comentavam sobre o próprio país, os problemas políticos, a miséria, as favelas. Fernando comparava e dizia que no país dele também era assim. Todos estavam lá pelo mesmo motivo, fazer o teste para conseguir emigrar. Fernando não pode conter o pensamento de que apesar de Zimbabwe ser claramente pior que o Brasil em muitos aspectos, pelo menos havia um ponto positivo: em Zimbabwe se fala inglês e isso simplifica a vida dos que querem sair. Até nisso o Brasil impõe restrições, ainda que não propositais, aos seus emigrantes.

Continua...

2006-05-07

Wagga-Wagga - final


Fez a prova de Inglês. Havia compreensão escrita, compreensão verbal e duas redações. O problema das redações é que havia pouco tempo para fazê-las, uns 45 minutos para as duas juntas. Fernando pensou que o Presidente da República de seu país seria completamente incapaz de passar nesse teste, mesmo que fosse em Português, enquanto provavelmente esse pessoal do Zimbabwe passaria sem problemas.

Depois da prova escrita haveria uma prova oral, uma conversa dirigida. Quando terminou a prova escrita tinha ainda faltava uma hora para a entrevista.

Era perto da hora do almoço, o tempo estava radiante, a temperatura tinha subido bastante, fazia calor. Pensou no gelo que cobria o campo de manhã cedo. Agora o céu estava azul escuro, de tão límpido. Decidiu que não queria almoçar, daria uma caminhada pelo campus. Os edifícios estavam espalhados, eram de no máximo dois andares. Aqui e ali viam-se estudantes conversando. As placas indicavam: "Engenharia de Bio-sistemas" ou "Laboratório de Citologia". Um grupo parecia estar se reunindo para uma prova. Uma moça e um rapaz conversavam bem de pertinho: namorados, na certa. Fernando ia passeando e olhando, ouvindo mentalmente "Quadros de uma Exposição" de Mussorgsky. Promenade... Catacumbas... Baba Jaga... Um lago ao longe indicava o fim do campus. Não teria tempo de explorar tudo em tão pouco tempo. A Universidade de Wagga era muito maior do que imaginara anteriormente.

Já era hora de voltar para a parte oral do exame. Quando chegou lá uma moça com aspecto oriental estava à sua espera. Muito simpática, explica que gostaria de conversar um pouco antes do exame, e que as pessoas são tímidas e em geral não gostam de falar. "Não sou tímido, não se preocupe" disse Fernando. "Ótimo" disse ela. Ela ligou o gravador e começou a fazer perguntas. As primeiras, muito simples, e aos poucos procurando fazer com que Fernando respondesse verbalmente a perguntas mais e mais complexas. Continuou por muito tempo, talvez uma hora. Fernando estava se divertindo: ela começou a perguntar sobre o Brasil, sobre o Carnaval, o contraste entre a pobreza e a alegria na avenida. Ele tinha opiniões algo controversas sobre tudo isso, e fazia questão de transmití-las da melhor maneira possível, ela parecia entusiasmada com as respostas. Ela era Filipina, e também contou dos problemas de seu país. Em determinado momento, diz:

"Bom, é melhor você ir agora, senão vai perder o ônibus de volta para a cidade."

"Já acabou?" pergunta Fernando.

"O que?" pergunta ela.

"O exame!"

E ela:

"Ah, sim, só os primeiros quinze minutos eram o exame. Não notou que desliguei o gravador? Não, eu estava é curiosa a respeito e continuei conversando..."

Eles riram, Fernando não tinha mesmo percebido. Ela era uma graça mesmo. No fim disse:

"Sabe, em geral é duro fazer as pessoas falarem, mas com você foi muito divertido..."

Enquanto esperava o ônibus, Fernando pensou na estranha visita que o Brasil fez a Wagga, na entrevista... Tentou se lembrar de quem havia começado a conversa a respeito. Certamente deve ter sido ela... O ônibus passava pelas faculdades do campus e ia para Wagga. No caminho recolhia estudantes, que ruidosos, animavam o ambiente com conversas excitadas. Fernando puxou conversa com dois amigos que estavam sentados à sua frente. Logo descobriu que um era indiano e o outro paquistanês. Eles explicam:

"Nos nossos países somos inimigos, mas aqui somos os melhores amigos."

Eles se abraçam, debochados, para demonstrar o que diziam. O outro, em tom mais triste:

"É terrível o que os políticos fazem. Tive que vir para Wagga para enteder."

Um deles conta como foi o dia que, na Índia, descobriu que iria estudar em Wagga-Wagga:

"Pensei que era o fim do mundo, no meio do deserto, nunca tinha ouvido falar desse lugar. Quando cheguei tive uma fantástica surpresa: a escola é boa, a cidade é ótima, limpa, nem voltaria mais para a Índia, se eu fosse capaz de ficar longe da minha família"

Os indianos são muito apegados à família. Quando se casam, em geral ficam na casa dos sogros ou dos pais. Gerações costumam morar sob o mesmo teto. Nas cidades grandes isso está mudando e os núcleos familiares pequenos do mundo ocidental já estão se impondo mais e mais frequentemente.

A cidade era minúscula. Um lugarejo do interior da Austrália, a Universidade de Wagga atraía estudantes de toda a Asia e era o coração da atividade econômica da cidadezinha.

Na volta, nas longas horas sentado no trem, ficou pensando em seu país. Pensou em como o resto do mundo progredia, como até em Wagga tudo funcionava bem e o bom-senso imperava, enquanto uma mula analfabeta e um bando de ignorantes, ex-sindicalistas, jornalistas, padres e artistas estavam puxando todo o país para baixo, para poder, rápidamente, chegar ao objetivo final: converter o Brasil em uma gigantesca Angola.

2006-05-04

Ventos da Tasmânia

Nesta época do ano a temperatura cai, o céu fica nublado e triste. O céu azul da maior parte do verão desaparece, e em Melbourne o senso de humor sofre um pouco. Tudo vai melhorar na próxima primavera, mas falta tanto...

Em certos dias sopra um vento forte, gelado, polar, que vem diretamente da Tasmânia. Que lugar incrível esse. Uma ilha ao sul da Austrália, com montanhas e vales, rios e estranhas formações rochosas. Lá o mar é azul como uma pedra preciosa. Dá às vezes vontade de descer e abraçá-lo, mas penso na temperatura que deve ser de uns 10 graus.

A Tasmânia é linda no inverno. Não me perdi nas misteriosas névoas ainda mas não custa nada voltar, é bem pertinho de Melbourne.

Gosto de ficar em pensões. Quase sempre quem toma conta é algum velhinho ou senhora, e de manhã cedo fazem um café maravilhoso. São as famosas pensões "Bed and Breakfast". Toalhas de mesa rendadas, a Tasmânia tem um ar velho, de início de século. Umas casas vitorianas, com comodos de formatos estranhos, adaptadas para o uso como hotel. Em um dos banheiros, quase nunca aquecidos, havia algumas das maiores aranhas que vi na vida. Mais assustadoras, só em Manaus e em New South Wales. Os australianos nem ligam. Desde que não seja uma redback ou uma funnel-web, está tudo bem, dizem. Acreditemos neles, pois.

Em Swansea, um pequeno vilarejo, a noite estava calma e não muito fria. Uma imensa lua cheia surgia por detrás de um mar misterioso. Saímos para jantar em um restaurante local. A maior parte dos frequentadores era de casais. Um senhor de uns sessenta anos e sua esposa estavam se refestelando em maravilhosas costeletas de cordeiro com vinho tinto. "De onde vocês são?" pergunta ele, curioso. "Do Brasil" digo eu, conformado. "Ah, sim! Carmem Miranda!" e faz com as mãos os trejeitos da dançarina. Pensei que realmente este lugar era fora do mundo... quanto fazia que não ouvia falar dela? Conversamos bastante. Ele perguntou se voltaríamos ao Brasil. Eu disse que não tínhamos a intenção de voltar. "Não está interessado em uma casinha em Swansea? Estou vendendo a minha." Pergunto: "Mas por que? É tão bonito aqui!" ao que ele responde: "Sim, só que é muito quieto. Chega um momento que ficamos cansados, queremos ir ao cinema ou ao teatro, e tudo fica a pelo menos 300 quilômetros de distância." Acho que concordo com ele. É bonito visitar esses lugares, mas quem tem a mentalidade urbana acha difícil ficar. Digo que infelizmente não estou interessado. Quando saíamos do restaurante, o homem vira para o nosso lado e lança uma que ele estava reservando para o final: "Bye bye, Brazil!", maroto, piscando o olho. Não era tão desatualizado afinal...

Um tempo depois percebo que o desatualizado era eu. Nesse exato mês era o aniversário de 50 anos da morte de Carmem. Ele sabia, eu não tinha nem idéia.

O vento sopra forte agora. Um assobio horripilante se ouve na noite escura. Vou dormir.