Ontem me peguei imaginando como seria a vida se eu fosse algo diferente. Como eu me sentiria se fosse um verme, por exemplo? E se eu fosse uma sanguessuga, um verme que está tão na moda no Brasil?
Não há dúvida que a vida seria diferente. Para começar seria cego. Provavelmente não distingüiria dia de noite, nem me importaria com isso. Ficaria no escuro, debaixo d'água, sentindo movimentos e vibrações. Estaria grudado em alguma pedra ou folha pela boca-ventosa por dias a fio, esperando aquela vibração tão especial que eu reconheceria entusiasmado: o movimento especial da comida, de algum animal com sangue dentro. Eu não me importaria de quem estaria sugando. Só estaria preocupado em que fosse bem sangrento. Se não fosse assim, uma sensação de desconforto tomaria conta de mim e eu desistiria, esperaria outra vibração, outro bicho. Mas se fosse um petisco sangrento, ah, que maravilha! Não soltaria de jeito nenhum, só quando estivesse tão cheio a ponto de não agüentar mais.
Uma vez satisfeito, um torpor tomaria conta de mim e me deixaria flutuar cegamente até uma folha ou pedra, onde tranquilamente digeriria a refeição, talvez por dias. Apesar disso a minha vida não seria um mar de rosas. Às vezes ficaria afundado na lama, teria que me contorcer para sair de lá. Só assim poderia ter chance de sobreviver. Outro problema seria encontrar uma outra sanguessuga para copular, talvez fosse possível seguí-la pelo cheiro. Deve ser difícil achar... Sem contar que existem animais que comem sanguessugas, como iria me defender? Não se sabe nem de onde o perigo vem: é uma conseqüência de ser cego, surdo e vermiforme. Se meu lago ou poça secasse, só me restaria uma morte lenta e agonizante no fundo lamacento. Não saberia para onde ir nem como escapar. Na verdade não saberia nem o que é um lago. Para piorar, parece que há sanguessugas que atacam outras sanguessugas... dessas também teria que tentar escapulir. No primeiro indício de dentada, teria que me contorcer enlouquecidamente para acabar em outro lugar, não sei se mais ou menos perigoso...
Tenho realmente uma grande sorte em ser uma pessoa. Nós, os humanos, não rastejamos nem sugamos o sangue de outros. Enxergamos, temos consciência e decidimos a própria vida, não somos escravos de instintos básicos. Não somos parasitas, não drenamos os fluidos vitais de outrem. Criamos, aumentamos o conhecimento do mundo, fazemos com que tudo à nossa volta melhore. Não precisamos grudar em nada nem em ninguém. Somos realmente livres.
Tem algo que me perturba, entretanto. Por acaso o que eu disse não é totalmente óbvio? Onde está o problema?
Antes de sair do Brasil, a minha repugnância com o deboche constante que é o PT de Lula chegou a um nível insuportável. Sonhava que saía de carro, dirigia de noite pela Nove de Julho, túneis, viadutos, avenida Paulista. Percorria São Paulo e buzinava a noite inteira. Sozinho. As pessoas olhavam e pensavam: "Quem é esse maluco que não pára de buzinar?" Alguns giravam o dedo ao redor da orelha, "É maluco, é?". Achava inacreditável que ninguém estivesse indignado, que todos à minha volta até se divertissem com o meu sofrimento. Estes não se importam em ser sugados até a alma, ou de ter a esperança subtraída de seu futuro.
É hora de ir embora. Sair do Brasil. Os incomodados que se mudem. Até imagino o coro de aplausos que suscitei: "Lá vai o chato. Agora poderemos... voltar a rastejar, sem que ninguém tente mudar o nosso jeito de pensar, jeito de não-pensar, nosso ir e vir repetitivo, nosso grande nada."
Pergunto-me o que será que os vermes sonham. Surdos, cegos e ávidos por algo para comer. Não sonham imagens e não sonham em mudar de vida, com certeza. Se sonhassem, sonhariam com a sensação deliciosa de plenitude, de estar tão cheio de sangue a ponto de não conseguir sugar mais nada. A esperança deles se resume à proxima boquinha, à próxima malandragem: pulo daqui, grudo neste, fujo daquele.
Para quem não quiser ser confundido com algum invertebrado, dou um conselho. Faça tudo o que os invertebrados são incapazes de fazer. Crie, escreva, leia, estude. Cante, dance, trabalhe duro, melhore tudo a seu redor. Discuta, organize debates. Nunca aceite a mediocridade. Viaje, fale com outros humanos. Mesmo se no início for difícil, não desanime: insista. Lembre-se sempre de que os verdadeiros vermes jamais sairão do chão, e vistos do alto eles não são nada.